Foi na época em que trabalhei no Núcleo de Arte Contemporâneo (NAC), órgão da Universidade Federal da Paraíba, que ouvi, pela primeira vez...

'Plumagem do Vento'

Foi na época em que trabalhei no Núcleo de Arte Contemporâneo (NAC), órgão da Universidade Federal da Paraíba, que ouvi, pela primeira vez, a expressão fazer fotografia. Até então, só escutara o termo tirar fotografia. E como estava lendo o monumental “Mimesis”, de Eric Auerbach, procurei estabelecer, meio intuitivamente, um cotejo entre as duas expressões.

No que me diz respeito, sempre utilizei o termo tirar fotografia, pois não pretendia acrescentar absolutamente nada ao campo de visão para o qual mirava o visor das toscas máquinas fotográficas de antigamente, denominadas de caixão, monstrengos destituídos de qualquer recurso técnico capaz de aprimorar ou de emprestar uma melhor qualidade às fotos.
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Satisfazia-me tão só em extrair um naco da realidade, uma fatia da realidade, tal e qual ela se deslindava à minha frente: o sorriso da namorada, o cãozinho de estimação, as ondas do mar, enfim, tudo o que tocava a minha sensibilidade. Quero dizer, não interferia no mundo exterior, pois ele já me vinha pronto e feito, de bandeja, diferente dos que utilizavam a expressão fazer fotografia, que transfiguravam a realidade acrescentando a ela um certo modo de ver, de enxergar a vida, muitas vezes distorcendo a imagem, tornando-a irreconhecível, por deixar falar as “esquizofrênicas” vozes interiores, as vozes do eu profundo, a exemplo do que fizeram os surrealistas no campo das artes plásticas. Pois bem. Estes que assim procediam eram os fotógrafos que expunham as suas fotos no Núcleo de Arte Contemporânea, fotos artísticas, cheias de efeitos especiais, ao passo em que eu, rude amador, continuei vida afora a utilizar a expressão tirar fotografia.

No haicai, de um modo geral, o eu-lírico mais retira da natureza do que acrescenta. Há, evidentemente, aqueles que não se comprazem com a passividade, com a servidão de apenas olhar e acatar a paisagem sem nela interferirem, sem darem o ar de sua graça. Mas, quase sempre, o eu-lírico do haicai lança um olhar contemplativo sobre a natureza, sobre as estações do ano, sobre o reflexo da lua amassada nas águas do lago etc. Embora os exemplos dessa “subserviência” à natureza sejam muitos, citemos apenas dois para não entediar o leitor:

De pernas compridas Na parede do meu quarto Uma aranha preta.

Sebastião Vasconcelos

Velho cajueiro Com galhos secos, grisalhos, Caem no meu terreiro.

Ronnaldo Andrade

É verdade que o sujeito emissor do haicai, até mesmo por ser quase sempre um contemplativo, não deve se converter num ninja ou num samurai, mas nada o impede de existir à semelhança de um demiurgo insatisfeito com um mundo criado à sua revelia.
Daí a necessidade de criar mundos paralelos, de se transformar numa espécie de reformador da natureza, a exemplo de Leminski ou, no âmbito da poesia feita na Paraíba, de Paulo Sérgio Vieira, conforme corrobora o lançamento recente de “Plumagem do vento”, livro de haicais* com um lúcido prefácio do também poeta Fransued do Valle. E tanto isso é verdade que, utilizado num dos haicais desse livro, o termo boca de lobo não significa a boca do canis lúpus, do animal lobo propriamente dito, mas a vala, o bueiro, a sarjeta, enfim, a boca de lobo, cuja tarefa consiste em fazer escoar as águas uivantes das chuvas para as galerias fluviais, quebrando assim o silêncio da noite, como também o clima de quietude, de serenidade, que bem caracteriza o haicai de um modo geral:

lua empoçada. bocas de lobo uivando alta madrugada

Aqui, então, já se conclui da interferência do eu-lírico na ordem lógica das coisas, espécie de rebeldia quando ele passa a afirmar incisiva e peremptoriamente que uma coisa é outra, que isso é aquilo, aproximando o próximo do aparentemente distante, celebrando uma espécie de núpcias dos contrários, a exemplo do que ocorre nos seguintes versos:

frutos de inverno. de asas maduras caem tanajuras

Já que o haicai é um instantâneo, um flagrante, e ambos têm tudo a ver com fotografia, diria que a cada clique que compõe esse livro Paulo Sérgio Vieira mais faz do que tira fotografias, ao tempo em que o sujeito emissor dos versos assume a postura zen preconizada por Buda. Ou seja, deixa-se ficar “entre atento, sereno e desperto para viver cada instante com atenção e equilíbrio”, ingredientes que asseguram a qualidade de todo e qualquer poema que se preze, pois nunca é demais repetir que “a pressa aniquila o verso”, segundo preceitua o poeta pernambucano Edson Régis.
* NOTA DO AUTOR: Na Paraíba, lembro de outros poetas que cultivam o haicai: Eduardo Martins, Saulo Mendonça Marques e Rejane Sobreira.

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