De Pedra Lavrada, no Cariri paraibano, para Moscou. Dá para imaginar? Pois é. São muitos quilômetros. E não é só a distância espacial ... Mas esse foi o caminho percorrido por nosso conterrâneo Paulo Bezerra para se tornar um dos mais autorizados tradutores de Dostoiévski do Brasil, na atualidade. Caminho heroico o desse intelectual, cujo destino inicial talvez fosse ser ferreiro, profissão do pai. Mas o seu sonho era outro: o de estudar. E esse sonho, que foi e é o de tantos meninos e meninas modestos em nossa pátria pouco gentil, transformou sua vida, como costuma acontecer quando as fantasias se tornam reais.
Esse professor universitário, hoje aposentado pela Universidade Federal Fluminense, mestre e doutor pela PUC-RJ, e livre-docente em Letras pela USP, concluiu o antigo curso primário com 14 anos de idade, em 1954. Quatro anos depois, saiu da Paraíba. Passou por Natal e por São Paulo, onde ingressou na militância sindical como soldador, até seguir para Moscou em 1963, com o objetivo de fazer cursos, filiado que era ao Partido Comunista Brasileiro. De lá, tomou conhecimento do golpe militar de 1964, o que certamente estendeu sua permanência, até achar que podia voltar ao Brasil, anos depois.
Retornando a Pedra Lavrada, para de lá recomeçar sua vida brasileira, iniciou por se desfazer do sobrenome Azevedo, de sua mãe, para adotar o Bezerra paterno, driblando assim a vigilância do regime militar, ainda vigente à época. Sem falar que em meados dos anos 1970 afastou-se definitivamente do PCB, “por absoluta descrença em seus objetivos”. Não por acaso, nunca mais quis se filiar a qualquer partido político.
Novo nome, novas crenças (ou descrenças), novo começo. Agora voltado à formação acadêmica, para concluir o que tinha começado na Rússia. Fez mestrado, fez doutorado e ingressou no magistério superior, onde permaneceu até aposentar-se. Concomitantemente, iniciou sua atividade de tradutor, na qual rapidamente adquiriu renome, pela qualidade de suas traduções diretas do russo para o português brasileiro. Nesse mister, traduziu mais de cinquenta obras russas, de Dostoiévski a Bakhtin, sempre reconhecendo a importância do trabalho pioneiro de Boris Schneiderman, que o antecedeu. E ganhou vários prêmios. Entre eles, o Jabuti de Literatura em 2005 e 2009, o Prêmio ABL de Tradução da Academia Brasileira de Letras, em 2009, e a Medalha Púchkin, do governo da Rússia, em 2012.
O interessante é que sua adaptação ao clima e à língua da Rússia não foi difícil, vejam só. Contou ele em entrevista: “Não tive nenhum problema com o clima russo; minha adaptação foi surpreendentemente rápida e fácil. Quanto à língua, ao chegar lá eu dominava o alfabeto e algumas expressões, como bom dia, boa tarde e mais algumas palavras suficiente para começar a balbuciar um princípio de comunicação”. Com apenas um semestre de permanência lá, o paraibano de Pedra Lavrada já conseguia se comunicar e ler jornais em russo, confirmando admiravelmente a fama dos seus (e nossos) conterrâneos como contumazes vencedores em terras alheias.
Indagado sobre a diferença do clima, fez as seguintes considerações: “Quanto à semelhança entre a aridez paraibana e o frio russo, são fenômenos naturais tão diferentes, que é difícil compará-los. Mas a aridez paraibana, em especial aquela ligada à seca, principalmente no Cariri e no Seridó, dá um profundo desânimo na gente, pela sensação de falta de vida decorrente da falta de chuva; muito diferente do frio russo, que sabemos ser passageiro e terminar com o degelo, e sua extraordinária abundância de água e renovação da vida. O clima afeta, sem dúvida, a cultura do lugar e sobretudo o seu usufruto”. Palavra de quem viveu e sabe.
Há poucos dias, o professor Wilson Marinho me chamava a atenção para a pouca importância dada entre nós aos tradutores. E é um fato. Esses profissionais cultos e dedicados, sem os quais a maioria de nós não conheceria importantes obras da literatura universal, têm sido sempre relegados a segundo plano. Muitas vezes, simplesmente ignorados, como se irrelevantes. Para muitos, talvez a maioria dos leitores, eles são invisíveis. As próprias editoras contribuem para isso ao colocarem o nome do tradutor em letras mínimas, sem nenhum destaque. Só não são silenciosos, os tradutores, pois uma das vozes que ouvimos, quando da leitura de um livro traduzido, é a sua, sobreposta ou misturada à do autor. Sem dúvida, é uma situação que precisa ser mudada. Os tradutores não são apenas coautores; não raro, sabemos, tomam, em alguma medida, o próprio lugar do autor, quando aperfeiçoam a obra traduzida. Eles, a seu modo, são também escritores. Daqui para a frente, vou me policiar para prestigiá-los mais, citando-os sempre, assim como se deve citar também a editora, responsável pela existência material do livro enquanto objeto de consumo colocado à disposição do público, através dos livreiros.
Mas voltando a Paulo Bezerra, a imprensa e as instituições culturais paraibanas estão a dever um maior reconhecimento desse nosso coestaduano discreto, hoje com 81 anos, orgulho da raça.