"Fosse o pó o essencial da escultura, a matéria valeria mais que a arte, e o vazio seria a verdade celebrada por todos". ≗ Jorg...

O sufrágio das almas

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"Fosse o pó o essencial da escultura, a matéria valeria mais que a arte, e o vazio seria a verdade celebrada por todos". ≗ Jorge Elias Neto "Assim, os sacrifícios, e os Sacrifícios do altar, e as esmolas de qualquer espécie, que são oferecidas para todos os mortos, para os muito bons, são ações de graças”. ≗ Santo Agostinho "A contradição não consente o arrependimento e o pecado ao mesmo tempo". ≗ Dante Alighieri (Divina Comédia) "A fé é o antisséptico da alma.  A vida é o pouco que nos sobra da morte". ≗ Walt Whitman

A morte é passageira do tempo. E seguimos a vida negociando com esse tempo humano da consciência, nesse pacto entre corpo e alma, entre os sentidos físicos com o sem-sentido da transitoriedade.

Mas nem todos têm essa minha visão da vida.

Na doutrina cristã, por exemplo, a morte possibilita que o justo se encontre com Deus e participe da “vida eterna”. Mas mesmo aquele destinado ao Céu deve ser antes purificado no que se denominou purgatório.

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E falar em purgatório é lembrar a obra grandiosa de Dante Alighieri: A Divina Comédia. Nela, o purgatório é considerado a parte mais original do poema, visto que, ao contrário do inferno e do paraíso, já consolidadas em diversas religiões, se tratava de um novo dogma da Igreja Católica quando da publicação da obra.

E onde se situava o purgatório dantesco?... Em uma única ilha, situada na porção austral do Planeta... Essa montanha, chamada purgatório, seria composta por círculos ascendentes, reservado àqueles arrependidos de seus pecados em vida e onde ficariam em processo de expiação dos mesmos.

Mas a ideia de purgatório não é exclusividade da Igreja Católica. Ela já figurava na história remota do judaísmo. Na Índia, indivíduos denominados “intermediários” poderiam viver uma séria de reencarnações que os conduziriam ora ao céu, ora ao inferno.

Mas foi na tradição católica que buscamos o nosso ponto de partida para discutirmos o que denominamos sufrágio das almas.

O purgatório tornou-se um dogma do catolicismo nos Concílios Ecumênicos de Florença (1431-1439) e foi ratificado no Concílio de Trento (1545-1563). Ficou definido que as almas no purgatório são purificadas pela dor e podem ser ajudadas pelos sufrágios dos vivos. Em termos eclesiásticos, sufrágio é sinônimo de oração que poderia ser ofertada às almas no purgatório (sufrágio dos fiéis).
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Mas o sentido pode ser mais abrangente: seria "tudo o que formos capazes de oferecer a Deus em favor daqueles que partiram desta vida".

Entretanto a palavra “sufrágio” possui um outro sentido fundamental para a sociedade e para o nosso texto.

Se analisarmos a etimologia da palavra “sufrágio” encontraremos sua origem no termo latino suffragium, ou seja: voto. Seria a manifestação direta ou indireta do assentimento ou não assentimento de uma determinada proposição feita ao eleitor.

Na verdade, enquanto na língua portuguesa encontramos o uso dessa palavra tanto no contexto religioso quanto no político, na língua francesa ela tem seu uso visceralmente ligado ao sentido político.

Para isso deixo aqui um excerto de um famoso discurso proferido por Victor Hugo no dia 21 de maio de 1850, denominado: Le suffrage universel.

Messieurs, le grand acte, tout ensemble politique et chrétien, par lequel la révolution de Février fit pénétrer son principe jusque dans les racines mêmes de l'ordre social, fut l'établissement du suffrage universel: fait capital, fait immense, événement considérable qui introduisit dans l'État un élément nouveau, irrévocable, définitif.
Senhores, o grande ato, tanto político como cristão, pelo qual a Revolução de fevereiro fez penetrar seu princípio nas próprias raízes da ordem social, foi a instauração do sufrágio universal: um fato capital, um fato imenso, um acontecimento considerável introduziu no Estado um elemento novo, irrevogável e definitivo.

E por que me refiro ao Sufrágio das almas e não pelas almas? De qual alma busco tratar? A dos mortos ou a dos vivos?

Falemos então um pouco da alma.

Penso que nos irmanamos em nossa insignificância na imensidão do Universo. E a alma é a tradução dessa angústia por entender a essência da vida. Alma é esse sopro, que perpassa a história dos povos e suas culturas.

Em grego o termo equivalente seria psykhé e significa "ser", "vida" ou "criatura”.

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Se, para muitos, a alma teria um local definido no corpo, como o coração (para Aristóteles); aqueduto de Sylvius (para Serveto); glândula pineal (para Descartes) e aí por diante, para outros, seria uma elemento espiritual.

Mas discorrer sobre o dentro e o fora, o que parte com o corpo ou o que paira no Universo, seria — quem sabe — dividir, distribuir nos escaninhos dos conceitos o que busco trazer como uma unidade. O que mais deletério pode haver que um prosélito defendendo, seja com graus maiores ou não de verdades, suas crenças ou suas reflexões?

Não, o sentido primeiro deste texto é propor o sufrágio das almas. E para isso devo buscar algo que há entre os homens que possa unir, ser um ponto de convergência.

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Trago agora essa nossa discussão para aquela que já foi a ilha imaginária de Cipango, Santa Cruz, Vera Cruz. A essa ilha, ora purgatório de Dante, trago esse tema “pandêmico” para o Brasil.

Penso que o brasileiro não deve, ou melhor, não tem o direito de se sentir “um homem sensível e de coração terno”. Ele deve se sentir um cidadão.

Talvez até, como observou Dostoiévski sobre os componentes do júri inglês, tenhamos que "considerar (tendo razão ou não) que o cumprimento de nosso dever cívico seja nosso balizador de conduta, suplantando, inclusive, um ato pessoal de caridade".

E antes de julgarmos os outros com a falsa consciência de nosso poder de decidir, sejamos antes juízes de nós mesmos. Críticos implacáveis de nossa recorrente hipocrisia e incoerência.

O sufrágio pelas almas não se fará apenas abraçando esse termo no sentido francês, algo que se deva fazer quando, como juízes de nossos políticos, do Presidente e de demais membros do executivo e legislativo, nos colocarmos a votar no próximo pleito eleitoral. Lógico que isso é fundamental que se faça. Mas o sufrágio pelas almas é algo atemporal, é algo que se deve respirar, é algo que advém da busca por uma retidão moral, é o respeito pelo que partiu e por aquele com o qual trocamos olhares.

Não importa o fato de que sempre haverá bocas do inferno mastigando asas de querubim.

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Lembremos sempre que a maior morte, em vida, é a impossibilidade. E morremos como seres humanos quando não atribuímos ao outro o valor de sua singularidade.

O sufrágio das almas é exercer o poder de escolha das atitudes que tomamos em resposta e em respeito às vítimas da pandemia.

Pode ser um começo, um aproximar-se da essência do homem descrito por Rousseau.

Se a Igreja ou o Estado perderam o poder de ladrilhar o caminho da concórdia e propagar valores morais coletivos, e os “donos” da batuta têm objetivos mais urgentes e egoístas, cabe-nos saber de nossa insignificância relativa e nosso papel propagador do bem.

Pois, como nos diz Platão, "a sabedoria consiste em ordenar bem a nossa própria alma".


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