Conheceram-se na universidade. Além da mesma idade, gostavam das teorias da Física e compartiam incurável urticária pela Química, exceto pelas monitoras que auxiliavam nas aulas práticas, com seus impecáveis jalecos brancos, luminescentes, flutuando por entre os tubos de ensaios como os gases da tabela periódica de Mendeleiev.
Mas, a despeito da sólida amizade, eram o modelo acabado da atração entre opostos. Havia um compenetrado, judicioso, contido, cabelo à escovinha, provecto antes de envelhecer; e outro, cujas ações estavam sempre assentadas na autoconfiança cega da juventude, brincalhão, boa pinta, blasé. O asceta e o hedonista.
A função preferida do primeiro era a de regulador dos horários de estudo, ajustando-os, com precisão suíça, às intermináveis festinhas do campus. Tinha mesmo certo prazer em desmanchar os prazeres. Era aí que o outro, indisciplinado por natureza, à vista daquela rigidez, chamava o amigo de tudo o que a mistura de fermentado de cana-de-açúcar com refrigerante de cola que bebiam era capaz de produzir. No entanto, obedecia. E no dia seguinte, na ressaca, reatava a amizade, agradecendo, em obsequioso silêncio, a oportuna intercessão, pois o exame final batia à porta. De chacota, pois era do tipo que não perdia um gracejo, passou a chamar o outro de “pessimista”, o qual se ria da bobagem, nos raros momentos de descontração.
Notava-se, com efeito, um retraço de tristeza, de desesperança, naquela circunspecção. Era dado a ver o lado negativo das coisas. A impressão era a de que se autopunia. Provinha de uma família simples, é certo. Houve sacrifícios, privações, para estar ali, no último degrau da escolaridade, num curso cobiçado. Porém, por si sós, as vicissitudes não são fator determinante na alegria de alguém. O afeto importa mais. E havia amor de sobra naquela casa sem pintura, porém arejada e com mesa sempre posta, onde nascera. Ademais, seu serelepe antípoda também experimentara a escassez de recursos pecuniários: o pai, outrora um próspero industrial, sentira o amargor da falência numa das inúmeras crises econômicas do país, cuja ocorrência em ciclos é regular como o nascer do sol. Quiçá até a harmonia familiar mesma, mercê do golpe da fortuna, restasse prejudicada, num quê de desolação pelo que se perdeu. Compunham, de todo modo, a par da bagagem filogenética de cada um, uma dupla antagônica na maioria dos aspectos, contudo identificada em uns poucos. Havia um laço espiritual que os interligava apesar, ou, quem sabe, por causa mesmo do otimismo versus pessimismo. Nas coisas profundas da amizade, faziam-se bem mutuamente.
Depois desse tempo escolar, a regência vital do imponderável encarregou-se de encaminhá-los para destinos díspares, nos moldes do estilo de cada um. Da última vez que se avistaram, num saguão de aeroporto, trocaram breves palavras e o pessimista disse que estava voltando para casa de folga, depois de dias numa plataforma de exploração de petróleo, setor no qual se tornara um ás. Em dois minutos de prosa, queixou-se do ritmo exaustivo de trabalho, do aeroporto lotado e das constantes viagens. Olhou para o relógio em dado momento e, trotando pelo corredor apinhado, quase não se despediu do atônito colega, que desejava uma longa conversa, talvez um café. Mas nada disso. O fugaz instante de lazer se esvaíra. Era o mesmo, como de hábito, pensou este de si para consigo, com um menear de cabeça, sem perder, no entanto, o prazer do reencontro.
Invernos se alternaram, no vaivém dos dias, e, alguns anos depois desse encontro fortuito, soube-se, por intermédio de um contemporâneo de ambos e ciente, portanto, da fraterna ligação entre eles, que o pessimista se encontrava internado, acometido por uma enfermidade grave, provavelmente irreversível. O amigo ficou genuinamente chocado e decidiu visitá-lo.
Preparou o espírito para encontrá-lo arrasado, mergulhado na doença, com a negatividade inata agravando e retroalimentando a condição desfavorável em que se achava. Ora, quem já tinha uma visão um tanto enfermiça da vida, como suportaria tal desafio? Já no corredor asséptico da casa de saúde, foi maquinando o que falar: quais escolhidas palavras, naquelas circunstâncias, elevar-lhe-iam o ânimo? E aquela sombra lamentosa, que sempre o perseguira, com quais luzes a alumiaria?
Bateu à porta do apartamento com um misto de expectativa e cansaço. Ele próprio sentia-se adoecido. Não imaginava que aquele instante tivesse tamanho significado para si, numa verdadeira conexão passado-presente, cujo escopo desconhecia. Já havia visitado outros entes queridos, até mais próximos, em dores. Contudo ali se estabelecera um vínculo transcendente com esse amigo em tudo dessemelhante, inversamente, tão especialmente estimado. Parecia interligá-los, à revelia de ambos, um novelo de Ariadne, cujo fio os conduzia à saída do fascinante labirinto que é a breve existência humana sobre a Terra. Visualizando, num átimo, os vestíbulos desse enredo já percorridos, ocorreu-lhe que nada fora obra do acaso. Havia uma relação de causa e efeito unindo e ordenando tudo o que parecia o caos, o tabuleiro de um quebra-cabeças sobre o qual a matriz lentamente se esboçasse. Conquanto distantes no conceito trivial de espaço e tempo, compreendia agora como estiveram sempre conectados, alimentando-se reciprocamente desse afetuoso antagonismo, como cargas conflitantes de um mesmo elétron, compondo seus vetores para equilibrar o sistema.
Inteiramente absorto por tais conjecturas, entrou no quarto, sentindo que transpassava numa espécie de portal. A cama, sobre a qual dormitava o amigo, dividia o pequeno espaço com a poltrona onde se acomodava uma linda moça. Para sair do transe, perguntou-lhe generalidades e, ao esboçar uma apresentação, ela o interrompeu: era a filha única e já o conhecia. Constrito e confuso, voltou-se para o doente, cujos olhos acabavam de se entreabrir. Aproximou o rosto e ele, sem a mínima surpresa, passou a mão na testa ampla do visitante, antítese da cabeleira vaidosa de outrora, sorriu levemente e disse: “Obrigado, meu irmão, por estar comigo desde que aqui cheguei”.