Jacob Bittencourt (ou Jacob do Bandolim como ficou conhecido), falecido em 1969, era considerado um dos maiores instrumentistas do Brasil. Nos finais de semana, Jacob promovia saraus (que ficaram famosos) na sua casa no bairro de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, nos quais participavam grandes nomes da música brasileira. No final da década de 1950, Jacob teve conhecimento (através de gravações caseiras) da excelência de um grupo de músicos do Recife
e fez o convite para que eles fossem ao Rio, para participar dos seus saraus e trocar experiências com os colegas cariocas.
Aceito o convite, em 1959, os músicos viajaram do Recife para o Rio de Janeiro. Cinco pessoas se acomodaram em um “confortável” jipe (que levava um reboque com as bagagens) para vencer mais de dois mil quilômetros que separam as duas cidades, rodando por estradas que, na época, ainda não eram asfaltadas.
Em um dos saraus realizados na casa de Jacob, com a presença dos músicos vindos do Recife, dois jovens espectadores relataram, muitos anos depois do episódio, o que presenciaram naquele dia. Um deles, na ocasião com dezesseis anos, assistiu a tudo, olhando do lado de fora da janela da sala onde os músicos tocavam, e narrou, ao jornalista Albino Pinheiro, a sua lembrança daquele dia, para ele inesquecível:
“Pixinguinha, Radamés Gnatalli, Tia Amélia. Tinha mais gente, mas não me lembro, todos eram cobras. Soube, então, que ia haver a apresentação de um cara do Recife, o Chico Soares, também conhecido como Sacristão ou Canhoto da Paraíba. Ele tocava com o instrumento invertido (claro, era canhoto), mas sem trocar as cordas, conservando-as na posição normal. Eu fiquei realmente fascinado, não só pela colocação tão estranha do violão, como pela indiscutível beleza daquele som. Foi exatamente naquele momento que eu disse para mim mesmo: ‘Vou nessa’”
Paulo Cesar Faria, o jovem que olhava o sarau pela janela e que decidiu ser músico ao ver Canhoto tocar, acabou se transformando, em um grande instrumentista e em um dos maiores compositores populares do país, adotando o nome de Paulinho da Viola.
O outro jovem que presenciara aquele sarau de Jacob, Hermínio Bello de Carvalho, depois poeta e compositor consagrado, escreveu, anos depois, sobre o que ocorreu naquele dia, relatando a reação do maestro Radamés Gnatalli, que estava presente na ocasião, quando da exibição do violonista canhoto:
“Esse cara é um doido! O desabafo acompanhado de um estrondoso palavrão, sublinhou o gesto insólito: o copo de chope atirado ao ar, respingando a sala, as partituras, o bandolim de Jacob [...] e sobretudo encharcando os olhos de Chico Soares, o Canhoto da Paraíba, alvo daquela desvairada declaração de Mestre Radamés Gnatalli”.
Conta-se que, durante muito tempo, Jacob do Bandolim preservou aquela mancha de chope que ficou no teto da sala da sua casa, como se fosse um troféu, a relembrar o entusiasmo do maestro Radamés com o virtuosismo do violonista canhoto na execução de um choro.
Quem era, afinal, o violonista que, naquele final dos anos 1950, era admirado por músicos da estatura de Pixinguinha, Jacob do Bandolim e do maestro Radamés Gnatalli e que fez despertar no jovem Paulinho da Viola o desejo de viver da música?
Francisco Soares de Araújo, o Chico Soares, o Sacristão, o Canhoto da Paraíba como ficou mais conhecido, nasceu, em 1927, na cidade de Princesa, no sertão paraibano. Vinha de uma família de músicos, seu avô era clarinetista, o pai tocava violão e na sua casa realizavam-se saraus com a participação dos principais músicos da cidade, como o saxofonista Manuel Marrocos e Joaquim Leandro, o regente da banda local, que lhe ensinou os rudimentos da música.
Nunca foi raridade, no Brasil, a existência, em várias épocas, de excepcionais violonistas canhotos, a começar pelo paulista Américo Jacomino (o autor de “Abismo de Rosas” e “Marcha dos Marinheiros”), o “Canhoto”, um dos maiores nomes do violão brasileiro nas primeiras décadas do século passado.
Praticamente todos os canhotos que tocam violão sempre invertem as posições das cordas do instrumento, colocando as cordas agudas (as “primas”) no lugar das cordas graves (os “bordões”). Como o pai e os irmãos de Chico Soares (que eram destros) também tocavam o único violão que existia na sua casa, a operação de mudança na posição das cordas se tornava impraticável. E é o próprio Canhoto da Paraíba quem conta como surgiu a sua inusitada e particular maneira de tocar:
O véio dizia: ‘Meu filho, você tem que aprender a tocar do lado que nós tocamos, porque assim ninguém pode lhe ensinar’. Ele me ensinava do lado normal. Quando ele dava as costas eu pegava do lado errado e ele dizia: ‘Ih, meu filho, tem jeito não. Pra lhe ensinar tem que botá de cabeça pra baixo ou diante de um espelho’
Em pouco tempo, o jovem Chico Soares, que era também sacristão na igreja de Princesa, se tornou um prodígio como violonista e a principal atração musical da cidade, como ele contava: “Quando chegava uma pessoa de fora, eu ia tocar, novinho, verdinho ainda”.
Aos dezesseis anos, Chico Soares tentou ir morar no Recife. Passou apenas quinze dias e, com saudades de casa, voltou para Princesa. A sua atividade como músico, na cidade, era mero diletantismo. Trabalhava em um posto de saúde, aplicando injeções.
Em 1952, com 25 anos de idade, Chico Soares deixou, afinal, o sertão paraibano, ao ser contratado como músico pela Rádio Tabajara, da capital da Paraíba, onde permaneceu, por cinco anos, fazendo parte do então chamado “conjunto regional” da emissora.
Em 1958, Canhoto mudou-se para o Recife. Conseguiu um emprego no SESI e foi contratado pela Rádio Jornal do Comércio. Em pouco tempo, seu nome como violonista já era destacado na cidade, o que fez com que, no ano seguinte, ele fizesse parte do grupo de músicos que foram convidados por Jacob do Bandolim para visitar o Rio de Janeiro.
Apesar da grande repercussão, entre os músicos, da sua passagem, em 1959, pelo Rio, Canhoto voltou para o Recife, e, durante quase duas décadas, a sua excepcionalidade como violonista ficou restrita a apresentações na capital pernambucana. Fez, nesse período, dois discos em uma gravadora local, com pequena tiragem e pouca divulgação.
Em 1977, Canhoto da Paraíba, finalmente, despontou para o cenário musical do país. Paulinho da Viola, na época compositor já renomado, resolveu fazer um tributo para aquele que o motivara a seguir a carreira musical. Com a produção de Paulinho saiu, naquele ano, por uma gravadora “independente” (Discos Marcus Pereira), um disco que é considerado uma obra fundamental na discografia do violão popular do Brasil: “Canhoto da Paraíba: o violão brasileiro tocado pelo avesso”.
O jornalista e músico Luís Nassif descreveu o impacto que causou, na época, o disco de Canhoto da Paraíba:
"Na segunda metade dos anos 70 você não tem um disco mais influente para o choro do que esse disco do Canhoto, que praticamente marcou uma ressureição do choro na mídia [...] Quando aquele som chegou até nós, aqui do centro-sul, foi uma descoberta inacreditável [...] Só os do choro podem ter uma ideia do que foi Canhoto da Paraíba para a música brasileira [...]"
Canhoto da Paraíba, a partir da repercussão nacional obtida pelo álbum de 1977, embora continuasse a morar em Pernambuco, passou a se apresentar por todo o país. Uma das suas mais marcantes participações foi no Projeto Pixinguinha, em que Canhoto percorreu várias capitais dividindo o palco com Monarco (o grande sambista da Portela) e Paulinho da Viola. Também são memoráveis suas apresentações no Heineken Concerts, também com Paulinho da Viola, e no Centro Cultural do Banco do Brasil — CCBB, com o Zimbo Trio, essa última resultando em um disco lançado pela gravadora Kuarup .
Em 1998, Canhoto da Paraíba sofreu um acidente vascular que comprometeu os movimentos do lado esquerdo do seu corpo, encerrando a sua brilhante carreira como instrumentista. Durante dez anos, o fenomenal violonista e compositor paraibano passou a se locomover em uma cadeira de rodas, convivendo com fisioterapias e até tendo dificuldades financeiras. Faleceu, em 2008, em um bairro de Olinda.
Além do amplo reconhecimento que Canhoto da Paraíba tem como excepcional instrumentista, a sua destacada carreira como compositor é exaltada por músicos respeitados, como o violonista Maurício Carrilho:
“Como compositor de choro em geral o Canhoto tá no primeiro time, junto com os grandes, junto com Pixinguinha, Nazareth, Jacob, junto com os maiores. Como compositor de choro para violão ele está entre os três melhores [...] João Pernambuco, um pioneiro dessa linguagem de composição de choro para violão, o Garoto e o Canhoto, que são as maiores expressões de compositores de choro pra violão que a gente tem na história da música brasileira”.
A importância de Canhoto como instrumentista e como compositor, também, é ressaltada por Paulinho da Viola.
“A primeira coisa surpreendente é a formação dele, a origem, o conhecimento dele, a música dele já demonstra um conhecimento mais amplo na composição. Afora o músico excepcional que foi obrigado a desenvolver uma técnica em função de ser um canhoto e tocar em um violão que um destro toca, mas a coisa mais impressionante no Canhoto é a qualidade das composições [...] uma quantidade muito grande em termos de composição, o que não é muito comum em músicos de violão [...] e músicas que você vai ouvir, todas são boas [...]"
Em depoimento dado ao programa Ensaio (1994), produzido por Fernando Faro para a TV Cultura, de São Paulo, Canhoto se referiu à quantidade de músicas que compunham, até então, a sua obra para violão: “Deu 92, mas acho que ainda tem mais”.
Até os 25 anos de idade, Chico Soares, o Canhoto da Paraíba, viveu no sertão da Paraíba, onde desenvolveu, de forma inusitada e autodidata, a sua impressionante técnica violonística e uma sonoridade própria para o instrumento. Acrescentando-se os cinco anos em que trabalhou na Rádio Tabajara, na capital do Estado, pode-se dizer que foi na Paraíba que Canhoto construiu toda a sua formação musical e onde compôs a maior parte da sua obra.
Paulinho da Viola, um dos maiores admiradores de Canhoto da Paraíba, ao analisar a obra do violonista paraibano, fez o seguinte comentário:
“A análise que a gente faz (da obra) é reveladora de algumas coisas, mas é muito difícil expressar essas coisas por palavras. Você só tem a revelação quando você ouve a obra”
Pode-se conferir a veracidade das palavras de Paulinho da Viola ouvindo-se a genial execução de Canhoto da Paraíba em choros como “Com mais de mil”, “Tá quentinho” e outras excepcionais músicas de autoria do notável compositor e violonista paraibano que estão disponíveis, em três discos, na plataforma streaming Spotify.