O mito é uma criação fantasiosa que procura explicar aspectos da natureza ou da condição humana. Nossos antepassados os cultivavam para dar sentido ao mundo. Esse reinado da imaginação durou séculos, até ser destronado primeiro pela filosofia, depois pela ciência.
Isso não significa que nos livramos dos mitos. Com outras roupagens, eles continuam orientando nossas crenças. Cultivamo-los como um vício da imaginação, ou melhor, como um suporte a nossas precárias certezas racionais.
Há vários tipos de mitos: políticos econômicos, sociais. Há também os pessoais, domésticos, que engendramos visando à saúde ou à boa convivência.
O cultivo de um deles me fez sofrer cerca de quinze anos com uma dor de cabeça quase diária. Eu não podia ler de manhã, que começava o latejamento na têmpora direita. Com ele vinham náuseas e, por vezes, vômito. A exemplo de João Cabral, transformei-me num cativo da aspirina – o “sol branco” que lhe apaziguava a dolorosa contorção dos vasos sanguíneos.
Procurei um médico, que me sugeriu tirar o leite e derivados.
Aí começou o drama, pois se revelou a força do mito. Como viver sem leite? Tentei, mas sem ele me sentia desnutrido. Mais do que isso: desamparado. Nenhum alimento tem tanto valor simbólico. Ao leite associa-se o seio materno, o crescimento, a solidificação do corpo e da mente.
O jeito era mentir para Dra. Moyra, que não conseguia entender a persistência da dor de cabeça:
— Tirei tudo, doutora. Leite, queijo, chocolate — dizia eu, constrangido. No fundo, não acreditava que eram esses alimentos os responsáveis pelo problema.
Até que um dia comi um “chocolate ao leite” gorduroso. Na manhã seguinte, tive uma dessas enxaquecas que os acadêmicos de Medicina chamam “de livro”. Com direito a cefaleia, vômito e coriscos espoucando nos olhos.
Comecei, então, a ligar uma coisa à outra. Pouco a pouco a luz da razão foi expulsando as trevas do mito. O vilão era mesmo o leite. Ou melhor, a lactose. À medida que me convencia disso, foi ficando fácil trocá-lo pela soja.
Ainda hoje, lamento não ter dito a verdade a Dra. Moyra. Ela desde o início estava certa. Consola-me, no entanto, ver que meu pecado foi pequeno – uma simples e piedosa mentira. Quantas pessoas, por apego aos mitos, não perseguem, torturam e matam o ser humano?