Eu tinha 8 anos, mal sabia ler, e já conhecia de cor a primeira parte de “O Canto do Piaga”, de Gonçalves Dias. Ainda que essa primeira parte tenha 24 versos, distribuídos por 6 quadras, confesso que não sou nenhum prodígio. Um prodígio saberia Gonçalves Dias de cor. O fato é que três das minhas irmãs mais velhas do que eu — eu sou o sétimo de uma família de 10 — estudaram em colégio de freiras, em Bananeiras, e uma delas mais afeita às artes cantava no coro. Foi através de minha irmã e da música, que a já citada primeira parte de “O Canto do Piaga” se alojou na minha memória.
Constituído de 3 partes, com 20 estrofes de 4 versos, “O Canto do Piaga” é um poema, como o nome diz, que trata do canto de um pajé ou piaga da tribo Tupi aos seus guerreiros. O termo canto não está ali apenas com o sentido poético de quando o poeta grego era chamado de aedo (ἀηδών) e ο poema de ode (ᾠδή), palavras etimologicamente ligadas ao verbo grego “aidō” (ᾄδω), cantar. O termo vincula-se a uma característica essencial do poema, criado, na sua origem, mais para os ouvidos do que para os olhos. No caso específico, trata-se de um canto especial, traduzindo um sonho profético do piaga, que o transmite a sua tribo.
Os versos são eneassílabos, com uma marcação bem feita, num ritmo ternário e pausas obrigatórias em três sílabas, 3ª, 6ª e 9ª, cuja harmonia agrada ao ouvido e ajuda a memória a reter o conteúdo. Além disso, o ritmo faz parecer um batuque de tambor, propício a representar o que o poeta supunha ser uma musicalidade indígena:
Ó guerREIros da TAba saGRAda, Ó guerREIros da TRIbo TuPI, Falam DEUses nos CANtos do PIAga, Ó guerREIros, meus CANtos ouvi.
Em minha experiência como professor de literatura, procurando compreender a métrica portuguesa e a métrica clássica do latim e do grego, ajudado, por outro lado, pelo ouvido atento à cantoria de viola, aprendi que a força da musicalidade do verso tradicional encontra-se em seu ritmo e na sua imposição sobre a métrica, ainda que muita gente pense o contrário. É o que acontece com o eneassílabo de Gonçalves Dias, com duas sílabas átonas precedendo uma sílaba tônica. Já vi muita gente boa, referindo-se a esse tipo de verso como um anapesto. Nada mais errado, pois o anapesto pertence a uma estrutura poética e linguística diferente, a estrutura greco-latina, que compreende a métrica a partir de pés e não a partir de sílabas, como o sistema da língua portuguesa. O anapesto é formado de duas sílabas breves e uma longa, não podendo ser comparado com a métrica da língua portuguesa, sistema em que não subsistiu a diferença de intensidade entre vogais breves e longas, como no latim e no grego, cuja combinação compõe, de modo engenhoso, um pé, concebido para ser um conjunto de sílabas, sem qualquer relação com a tônica das palavras, como em português.
Na primeira parte de “O Canto do Piaga”, composta de 9 quadras, o Piaga fala à tribo de um fantasma que o visita em sonho. O intuito do fantasma é advertir o Piaga dos augúrios terríveis de que ele não se deu conta por estar dormindo: o sol ofuscado pelo negrume do céu, a coruja piar de dia, a lua de fogo e sangue nascendo entre as nuvens. O Piaga, então instruído, incita todos a ouvir a profecia terrível que ele recebeu do fantasma (segunda parte, 5 quadras). Na terceira parte (9 quadras), revela-se, então, a profecia: um monstro vem para destruir os Tupis e os que escaparem à destruição fugirão de suas terras, tendo perdido tudo, inclusive as filhas e as mulheres, levadas pelo monstro, sob a proteção de Anhangá. Escravidão, destruição, rapto, morte e dispersão é o que resultará da chegada desse monstro. Nada a fazer, a não ser invocar a piedade dos deuses contra a ira de Anhangá.
A síntese acima, nem de longe diz da grandeza do poema, composto de imagens belíssimas, como a metonímia genial para os navios — “Basta selva, sem folhas, i vem” (Parte 3, estrofe 1 — atente-se para o uso arcaico de aí, “i”). É preciso ler e revisitar sempre o poema, para haurir a sua beleza e poder ver ali, muito bem disfarçados os elementos clássicos construindo o seu arcabouço. É costume se dizer que o Romantismo, como projeto literário, repudia o clássico. Como programa de escola literária, é verdade. Isso não significa, no entanto, que os temas clássicos não possam ser trabalhados e recriados, como acontece, por exemplo, em “O Canto do Piaga”. Em primeiro lugar, há o canto profético que surge de um fantasma, durante o sono do Piaga; em segundo lugar, os augúrios, elementos que permeiam épicos como a Ilíada e a Eneida. Neste último, o herói Eneias vê em sonhos o fantasma de Heitor que lhe diz da destruição da cidade e de sua fuga necessária, levando consigo os Penates Troianos, para fundar outra cidade — os Manitôs que já fugiram da Taba, como diz Gonçalves Dias, na última estrofe do poema. Em seguida, Eneias dá de cara com outro fantasma, o da esposa Creúsa, que lhe profetiza a respeito do novo reino que ele haverá de fundar. Estas duas aparições fantasmagóricas se dão no Livro II da Eneida.
Observe-se, pois, esta estrutura: uma profecia fundamentada em augúrios, fala da destruição da cidade, operada por um inimigo que virá pelo mar, provocando a morte, a escravização das mulheres – filhas e esposas — e levando à fuga por ínvios e errantes caminhos aqueles que escaparem a essa ruína. Diante dela, qualquer leitor íntimo dos clássicos verá a Ilíada e a deixa para a Eneida, com a fuga de Eneias forçada pelos fados, o que já se anuncia na Ilíada. No entanto, é exatamente essa estrutura que temos na construção de “O Canto do Piaga”. A nova roupagem que lhe dá Gonçalves Dias cumpre o que é programático do Romantismo, com a sua característica de buscar as bases da nacionalidade, mas não apaga o que se encontra subjacente na memória, espicaçada pelo ritmo e pela musicalidade.