Normalmente, quando um artista, um escritor, um pensador desaparece, sinto-me atraído por um retorno às suas obras. Certamente é uma ma...

Lições de Contardo Calligaris

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Normalmente, quando um artista, um escritor, um pensador desaparece, sinto-me atraído por um retorno às suas obras. Certamente é uma maneira de afirmar sua presença ainda entre nós, uma espécie de vitória sobre a morte, tão pertinente nestes tempos de Páscoa cristã. Realmente, quem deixa uma obra atrás de si sobrevive à parada do coração, pelo menos por uns tempos. E às vezes resiste para sempre, como é o caso dos verdadeiramente grandes. Shakespeare, por exemplo.

Nesse espírito, voltei agora às crônicas de Contardo Calligaris, publicadas regularmente na Folha de S. Paulo durante os últimos anos e recolhidas em livros (coletâneas) pela editora do mesmo grupo empresarial do jornal. Detive-me em dois volumes: Terra de Ninguém, de 2004, e Quinta-Coluna, de 2008, com o melhor desse psicanalista e escritor milanês que deixou-se,
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como tantos outros estrangeiros, seduzir pelo Brasil, e aqui fixou-se em São Paulo, dividindo seu tempo entre a clínica, a escrita e os compromissos acadêmicos internacionais. Ele nos deixou há poucos dias, ainda relativamente jovem, aos 72 anos, desfalcando-nos do muito que ainda poderia produzir, o que é uma pena, claro.

Falei em crônicas, mas acho que seus textos jornalísticos estão mais para ensaios. Sei que essas classificações no fundo não têm maior importância. Tanto faz crônica como ensaio, o que importa é o conteúdo, óbvio. Eu diria que os textos de Calligaris são ensaios com a leveza e a concisão das crônicas, e essa talvez seja a razão de seu sucesso junto ao público não acadêmico, o público dos jornais de todo dia.

Calligaris foi antes de tudo um antidogmático, característica fundamental para alguém que persegue não apenas o conhecimento mas também a sabedoria. Preferia as perguntas às respostas, e as dúvidas às certezas. Mas, psicanalista e psicoterapeuta que era, esteve sempre atento às respostas e às certezas, sabedor do muito que elas revelam sobre quem fala. E essa maneira socrática de pensar ele expôs com muita clareza na apresentação do livro Quinta-Coluna, como veremos sucintamente a seguir.

Ele começa afirmando: “Não gosto de concordar, ou melhor, considero com desconfiança um diálogo em que cada um pareça sobretudo confirmar a convicção do outro”. E justifica: “quase sempre, quando isso acontece repetidamente, há um terceiro que vai para a cadeia, o paredão ou os campos de reeducação. Quanto mais pessoas concordam e quanto mais elas concordam, tanto mais a coesão de seu grupo pede a exclusão dos que discordam”. E conclui: “esse tipo confortável de diálogo deixa cada um exatamente como estava (ou como era) antes que a conversa começasse. No máximo, ganha-se uma espécie de reforço quantitativo: agora sei que tenho razão, pois somos dois ou mais a pensar a mesma coisa”. Eis aí exposto, em poucas palavras, o perigo do pensamento único, o risco da concordância generalizada ou universal. Portanto, discordar é preciso, civilizadamente, claro, se se pretende preservar a liberdade de cada um, o pluralismo em geral, a democracia (com todas as suas falhas), enfim. Mas, segundo ele, discordar também exige cautela. Vejamos por quê.

Diz Calligaris: “... discordar significa também, em geral, confortar suas próprias ideias, fortalecer, por oposição, o que a gente já pensa. Ou seja, é um jeito de ficar na mesma. Também é uma boa maneira de abolir dúvidas e conflitos internos: esses ficam por conta dos outros, que são encarregados de encarnar, lá, fora de mim, as ideias que me colocariam em conflito comigo mesmo”. Sim, pois se discordamos dos outros, sem nos abrirmos para a possibilidade de os outros estarem mais certos que nós,
a discordância servirá apenas para reforçar nossas próprias opiniões, nossas próprias crenças, deixando-nos, no embate da discussão, cada vez mais intransigentes e dogmáticos, não raro potencialmente capazes de levar os que discordam para a cadeia, o paredão e os campos de reeducação ( e de extermínio). O que fazer então se concordar é perigoso e discordar também?

Conclui Calligaris, sem dogmatismos: “...se não gosto nem de concordar nem de discordar, o que sobra? Sobra gostar da quinta-coluna interna de cada um. Sobra fazer apelo aos pensamentos ou aos sentimentos que minam nossa coerência, que estão em nós como infiltrados ou rebeldes sonolentos”. Ou seja, sobra nos abrirmos para as incertezas, para as dúvidas, para as diferenças; sobra não nos fecharmos previamente nas nossas convicções inabaláveis, não ficarmos impermeáveis aos argumentos alheios, como donos exclusivos da verdade. Em outras palavras, sobra sermos civilizadamente tolerantes, buscando sempre manter e respeitar aquele mínimo de equilíbrio entre o nosso pensamento e o dos outros, sem o qual nenhuma convivência é possível, sem o qual a barbárie fatalmente se instala, com prejuízo de todos.

Eis aí, em poucas linhas, uma das filosofias de Contardo Calligaris. Sem dúvida, uma maneira sábia de pensar que certamente muito lhe serviu e que muito pode nos servir a todos, no divã e fora dele.

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