Há mais de um século, o cinema atua como um universo paralelo onde os seres humanos se espelham e que por sua vez — espelha a odisseia da humanidade. O cinema condensa uma temporalidade particular que nos regata da crueldade do tempo cronológico devorador; portanto, nos salva do medo da finitude e nos atira numa dimensão paralela, catártica, que nos arrebata e nos encoraja para agir afirmativamente na espessura da vida vivida.
Além disso, consiste numa forma de arte poderosa, simuladora de um fluxo de transcendência cotidiana, pelo qual nos transportamos, ultrapassando as barreiras espaço-temporais.
O cinema modificou consideravelmente as nossas concepções de tempo e espaço, as referências mais elementares para a constituição das nossas identidades. Entretanto, o seu grande fascínio reside principalmente em sua capacidade de incorporar e compartilhar a realidade psicológica, física e social dos homens e mulheres de todos os tempos e lugares.
Os seres imaginários do cinema são duplos dos humanos, criados à sua imagem e semelhança. A propósito, Edgar Morin, no livro As estrelas (1989), nomeou estes seres "novos olimpianos": criaturas extraordinárias com estatuto semelhante aos deuses do Olimpo e aos personagens mitológicos do mundo antigo, que gozam de prestígio junto ao público, pois encarnam o seu desejo de eternidade.
Como uma gigantesca indústria dos sonhos, o cinema instiga o desejo, a partir de uma materialidade simbólica, forjada pelos afetos e sensações em fluxo na tela. O cinema atua sobre os corpos, liberando as imagens do erotismo e da sensualidade; atua na economia libidinal, influindo nas atitudes humanas, na ética, no cuidado de si, e na relação com os objetos de desejo.
O olhar é uma forma de possuir e as telas aproximam os espectadores do corpo, pele, olhos, boca, dentes e músculos dos homens e mulheres do cinema. Uma vez que às estrelas do cinema é conferida uma beleza física extraordinária, estas podem arrebatar os sentidos dos espectadores, estimulando-lhes a ilusão de serem correspondidos em suas paixões voyeuristas pelas criaturas mitológicas projetadas nas telas.
Ontem, Rodolfo Valentino, Elvis Presley, David Bowie, Rita Rayworth, Joan Crawford, Bete Davis, e hoje, Leonardo de Caprio, Keanu Reeves, Tom Cruise, Angelina Jolie, Sandra Bullock, Cate Blanchet e outras figuras andróginas do cinema povoam o imaginário dos espectadores. Eles e elas são "personas sexuais" Paglia (1992), com o poder de encarnar os tipos físicos e psicológicos que apagam as fronteiras entre os gêneros e subvertem os papéis sexuais pré estabelecidos.
Como os olimpianos clássicos, são andróginos; simultaneamente masculinos e femininos; no cinema exalam uma ambiguidade sensual que afeta os corpos-telespectadores. Então, exibindo estes seres extraordinários, o cinema cria elos de identificação, libertando os fantasmas do inconsciente, projetando a anima (a alma feminina) que existe no homem e o animus (a alma masculina) que existe na mulher. Assimilando as idéias de Jung (1991) e a análise dos "estados psicológicos", observamos que na tela se atualizam os arquétipos, imagens primordiais da conjunção cósmica, em que o diurno e o noturno, o animus e a anima, o masculino e o feminino se fundem e tornam-se um único ser, resgatando a unicidade original do universo.
Seres esféricos, fortes, vigorosos, tentam galgar o Olimpo, a montanha sagrada onde moram os deu ses gregos. Querem o poder. Possuem os dois sexos ao mesmo tempo, quatro mãos, quatro pernas e duas faces idênticas, opostas. Diante do perigo, o chefe de todos os deuses, Zeus, decide cortar ao meio os andróginos (do grego andrós, aquele que fecunda, o macho, o homem viril; e guynaikós, mulher, fêmea). "Sede humildes", podemos supor que trovejou o grande deus, arremetendo os raios que apavoraram os tempos an teriores à descoberta do fogo. Ao enfraquecer o homem e a mulher, assim criados, Zeus condenou cada metade a buscar a outra, o desejo extremo de reunir -se e curar a angustiada e ferida natureza humana. (Superinteressante, jul, 1993).
A psicologia de Jung atualiza a reflexão sobre a pluralidade dos mitos, incluindo o apolíneo e o dionisíaco. Aliás, o cinema, a psicanálise e a filosofia de Nietzsche têm muito em comum, pois concebem a polifonia dos mitos como instâncias reveladoras dos duplos, diferenças e alteridades dos humanos[1].
Como no mundo noturno dos sonhos, os filmes se realizam também por outra linguagem, que revela as dimensões ocultas da alma, recalcadas pelo processo civilizatório.
A psicanálise, surgida sob o espírito positivista do século XIX, no campo das ciências da saúde mental, veio para curar, eliminar as neuroses, os desvios e enquadrar os indivíduos na normatividade social. Mas convém lembrar, a "psicologia das profundezas" (Jung), consiste — sobretudo — numa hermenêutica, em um método de interpretação que, através da simbologia dos arquétipos, lança luzes sobre a dimensão obscura da existência, esclarecendo acerca dos grandes enigmas, dos desejos e aspirações dos seres humanos.
A licença poética do cinema lhe permite mergulhar nas instâncias mais intimistas do ser humano, espreitar suas dores, alegrias, a parte de júbilo e de descontentamento. Na sala escura (ou home theatre), na audiência solitária, as imagens reveladas têm o poder de liberar a catarse, o êxtase, o arrebatamento[2].
O cinema, enquanto produto de um esquema industrial, é atravessado por interesses e ideologias, e não está imune às influências econômicas e políticas. A sua trajetória se equilibra entre os momentos de repressão e de liberdade, nos quais se realizam as experiências de ocultação e revelação das ligações homoeróticas, de acordo com os contratos estabelecidos com os poderes hegemônicos, igrejas, empresas, instituições, dispositivos de que depende para a sua socialização.
O dito "cinema comercial", seguindo os padrões estéticos da sociedade de massa, pode reforçar o preconceito e a discriminação. O cinema de arte, porém, mais pacientemente elaborado e eticamente orientado por meio de uma perspectiva crítica e sensível, pode gerar formas de aceitação e reconhecimento das identidades sexuais "não convencionais".
A sétima arte pode encorajar o exercício das liberdades individuais e dependendo do uso que fizermos de suas mensagens, podemos nos tornar mais informados, eticamente orientados, e educados para fazer escolhas e tomar decisões.
Exploramos aqui, particularmente, a representação dos afetos e atrações homossexuais, o modo como o cinema retrata os seres humanos, os seus desejos, escolhas e realizações. Observamos como a sétima arte fornece evidências consistentes para apreciarmos o fenômeno que tem sido descrito, desde a segunda metade do século XX, como uma "identidade gay". O termo é, sob muitos aspectos, herdeiro da idealização romântica do homoerótico outsider[3]. Traduz uma atitude assumida de gênero e igualmente uma postura de transgressão, e demarcação de um "estilo de vida" à margem da ideologia do patriarcado.
Como observou Foucault, depende diretamente do modelo de organização política fundada na consciência de interesses de classe, e está profundamente enraizada na tradição norte-americana do associativismo comunitário e da luta pelos direitos civis, dos indivíduos e das minorias (Costa, 2002).
Mitologias da vida afetiva e sexual na antiguidade
O mito da beleza masculina na iconografia da Grécia Antiga, segundo Camile Paglia (1992), é responsável pela modelização dos valores estéticos e da noção do belo masculino, tornado objeto de desejo até o cinema dos dias de hoje.
No que concerne à condição homoerótica, parece que durante muito tempo estivemos presos a um ethos, uma ética, um habitus, um estilo de conduta formado a partir das imagens greco-latinas, norteando os valores em matéria de beleza, moral e liberdade, e também nos orientando face aos regimes dos afetos, do erotismo e da sexualidade.
Muitos historiadores têm alertado para o falso mito da liberdade sexual no mundo antigo. Com efeito, seria prudente repensar a natureza dessa cultura democrática e condescendente, que aceita a pederastia como uma forma de pedagogia, mas é, ao mesmo tempo, classista, misógina e escravocrata.
Reencontramos representações antigas das "amizades particulares", em filmes já clássicos como Satyricom, (Fellini, 1966) adaptação do romance de Petrônio, no grotesco Calígula (Tinto Brass, 1980) e no recente Alexandre (Oliver Stone, 2004) que, distintamente de Tróia (Wolfgang Petersen, 2004) e Gladiador (Riddley Scott, 2000), é menos repressivo e mais libertário, não se furtando a revelar as preferências sexuais polivalentes na cultura greco-latina.
A controvérsia sobre as relações afetivo-sexuais entre os rapazes na antiguidade tem sido explorada por filósofos e historiadores como Foucault (1984), Dover (1994), Sergent (1984), Boswell (1985), que demonstram, em diferentes registros, como eram as relações homoeróticas (muito menos liberais do que se costuma pensar); estes pensadores contribuíram enormemente para um esclarecimento das questões no domínio da ética e da tolerância social no mundo antigo e as suas transfigurações no que hoje se chama vulgarmente de "homossexualidade masculina".
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