O mito é o nada que é tudo O mesmo sol que abre os céus É um mito brilhante e mudo O corpo morto de Deus Vivo e desnudo. Fernando Pessoa ...

A essência dos mitos

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O mito é o nada que é tudo O mesmo sol que abre os céus É um mito brilhante e mudo O corpo morto de Deus Vivo e desnudo.
Fernando Pessoa

O registro sobre os mitos se compõe de um vasto estudo de autores que foram imprescindíveis para a compreensão e o aprendizado da Literatura Clássica. Ao estudar Eurípedes, Hesíodo, Sófocles, Ovídio, Platão, Ésquilo, Virgílio, Homero — entre tantos outros —, vamos concluir que todos os heróis inseridos nos escritos nos ensinam por meio de uma sutil simbologia.

Indagada sobre a origem de Homero, a sacerdotisa Pítia responde:

“Sobre o que é ignoto me interrogaste. A linhagem e a pátria da sereia Ambrósio Canora. Ítaca é a terra natal de Homero. Foi o seu pai Telêmaco e sua mãe Policeste, uma nestóride. Esse homem deles Vem polipansábio“.
Tradução de Haroldo de Campos

Na verdade, a origem de Homero (928 aC – 898 aC) não é conhecida. Pouco se sabe sobre ele. Mas, segundo Pítia, o poeta pertenceu à linhagem de Odisseu (Ulisses).

No Poema A Odisseia, Homero ressalta Odisseu como um homem arguto, com senso de observação muito acentuado. Ao longo de suas aventuras, ele se purifica gradativamente. Leva anos para retornar à sua Ítaca. Quando retorna, o seu filho Telêmaco já é um rapaz crescido. Ele não acompanhou o crescimento do filho. Muito arrogante, discute com os deuses, sofre muitas quedas. Enfrenta e enfurece Posídon e sofre tudo o que tem de sofrer até o ponto de aprender com os próprios erros.

A primeira guerra de Odisseu no início de sua viagem é travada contra os Cícones, aliados guerreiros dos troianos. Sem nenhum motivo aparente, Odisseus os ataca imprudentemente, perdendo boa parte dos seus homens. Ele não tem motivos plausíveis para o ataque, exceto o fato de que, há muito tempo, os Cícones eram aliados de um antigo inimigo dele. A partir dessa ação impensada, decantam-se (extraem-se) vários elementos: a posição de estarmos sempre na defensiva contra aqueles que achamos ser nossos inimigos; a costumaz vitimização em procurarmos os culpados de todos os nossos problemas; enxergarmos todos como uma ameça, ainda que sem nenhuma justificativa.

O ataque de Odisseu aos Cícones é irracional e pôe em risco sua tripulação, por um receio infundado.

Em outra aventura, Odisseu e seus companheiros têm a viagem interrompida quando desembarcam na terra dos Ciclopes, procurando comida no retorno para casa. Não sabendo que se trata de um lugar onde o ciclope Polifemo dormia e guardava as suas ovelhas. Polifemno, filho de Posídon, é um monstro que só tem um só olho e que devora homens. Quando regressa, ele fecha a caverna com uma rocha enorme, aprisionando Odisseu e seus guerreiros. Ofegantes, os viajantes revelam sua presença e o gigante agarra de dois em dois homens, comendo-os imediatamente. Em desespero, Odisseu diz que seu nome é "ninguém" e tenta acalmar Polifemo, oferecendo-lhe vinho para que ele se embriague. Quando o monstro adormece, Odisseu fura-lhe o olho e traça um plano de fuga: ele e seus companheiros escondem-se embaixo das ovelhas, para, na manhã seguinte, estarem também salvos. Polifemo acorda, grita pelo irmão e pergunta o que o havia ferido, ao que ele responde que tinha sido “ninguém”.

Nessa passagem, percebemos que a única forma que Odisseu encontra para se libertar consiste em tornar-se “ninguém”. Observamos a chance que ele se dá de apagar o próprio nome, subordinaando o seu egoísmo e petulância e conquistando a humildade, pois também é muito vaidoso.

Em um outro momento crucial da aventura, Odisseu se encontra sozinho, desnudo, à deriva, porque seu barco foi destruído. A deusa Leucoteia, então, toma a forma de uma gaivota, para não ser reconhecida por Posídon, e entrega um véu branco a Odisseu, advertindo-o a proteger o coração. Isto simboliza que devemos resguardar o nosso coração dos maus sentimentos e cultivarmos a pureza.

No mito de Medeia, escrito por Eurípedes (480 aC – 406 aC), encontramos a princesa Medeia, sobrinha de Circe, que abandona a família (para isso mata também o irmão) e, por amor, segue o herói Jasão. Ela tem filhos com ele e, posteriormente, é trocada por outra, perdendo a posição de esposa e passando à condição de concubina do marido. Um forte sentimento de ira, ciúme e vingança a invade, por não aceitar a condição ultrajante que se encontra. Resolve matar os filhos como forma de vingança e foge no carro do sol.

Segundo os estudiosos, Medeia foi usada pelos deuses como instrumento de punição à Jasão. Percebemos no mito o que, infelizmente, é um fato que se repete aos longo dos tempos.

O estudo dos mitos acessa um nível de consciência da pessoa. São projeções de ideias, modelos de comportamentos que irão trabalhar a nossa índole. É um estudo transcendental, não importa se em tempos remotos ou atuais. As lições são as mesmas. Identificamos nos mitos os nossos impulsos, orgulho, egoísmo, cólera, tão presentes na condição humana. Eles mostram o caminho que devemos seguir e qual a rota que devemos evitar. Ítaca não precisa ser um lugar real; pode significar algo diferente para cada pessoa. Uma jornada íntima que nos motiva a cada batalha vencida. Algo morre dentro de nós, para que dê espaços para o novo. Uma nova essência harmonizada após superados os desafios de evolução. É reconfortante sabermos qual foi o nosso maior gesto épico durante a vida. O que representou uma real transformação e renascimento dentro de nós.

Ítaca
Konstantino Kaváfis (1863–1933)

Se partires um dia rumo a Ítaca, faz votos de que o caminho seja longo, repleto de aventuras, repleto de saber. Nem Lestrigões nem os Ciclopes nem o colérico Posídon te intimidem; eles no teu caminho jamais encontrarás se altivo for teu pensamento, se sutil emoção teu corpo e teu espírito tocar. Nem Lestrigões nem os Ciclopes, nem o bravio Posídon hás de ver, se tu mesmo não os levares dentro da alma, se tua alma não os puser diante de ti. Faz votos de que o caminho seja longo. Numerosas serão as manhãs de verão nas quais, com que prazer, com que alegria, tu hás de entrar pela primeira vez no porto para correr as lojas dos fenícios e belas mercancias adquirir: madrepérolas, corais, âmbares, ébanos, e perfumes sensuais de toda espécie, quanto houver de aromas deleitosos. A muitas cidades do Egito peregrina para aprender, para aprender dos doutos. Tem todo o tempo Ítaca na mente. Estás predestinado a ali chegar Mas não apresses a viagem nunca. Melhor muitos anos levares de jornada e fundares na ilha velho enfim, rico de quanto ganhaste no caminho, sem esperar riquezas que Ítaca te desse. Uma bela viagem deu-te Ítaca. Sem ela não te ponhas a caminho. Mais do que isso não lhe cumpre dar-te. Ítaca não te iludiu, se a achas pobre. Tu te tornaste sábio, um homem de experiência, E agora sabes o que significam Ítacas.

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