De repente me vejo passando pela calçada de chão batido do pequeno chalé do antigo Centro Espírita, em Jaguaribe, o vermelho das papoulas ...

Desviando a pandemia

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De repente me vejo passando pela calçada de chão batido do pequeno chalé do antigo Centro Espírita, em Jaguaribe, o vermelho das papoulas cheias rivalizando seu brilho com os ramos amarelos das rainhas do prado derramadas no muro vizinho de Hermano José. E Hermano José sentado de través no vão da sua janela.

Eu vinha do jornal que o escritor e governador Ernany Satyro haveria de remover do centro histórico. Atravessei a praça, entrei na Pedro II, emparelhei com dr. Gonzaga Burity que acabara de sair de sua aula nos Jesuítas. Inclinei-lhe a cabeça e ele retribuiu. Como me fez bem!

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Do lado direito, numa das casas de parede-meia, a irmã de Celso varria o pequeno terraço. Não era ainda o Celso Furtado que o Ocidente veio consagrar depois. Dobrei mais à frente na esquina que rodeia o Mercado, rumo à Alberto de Brito, 49, que era a casa onde eu me inaugurava, com minha mãe, como moradores da capital.

Estou vendo bem vivos ainda os seus olhos enérgicos, mas ali indulgentes, botando reparo nos cômodos da casa que, no aperreio, eu conseguira alugar. Nossa casa do interior não resistira à invernada de 1953 e por milagre não desabara, de madrugada, sobre o quarto do oratório ao lado de minha mãe. Um telegrama me punha a par do sucesso e de sua vinda para a minha companhia, que não era muita coisa. Do que veio de lá restam a lembrança e a santinha do oratório.

Seu olhar se detém nas paredes da nova morada, nas biqueiras baixinhas como as casas dos antigos moradores. Naquele instante, olhar de quem fizesse a conta do nosso declínio.

Vem o sol do outro dia, sol forte e rútilo de verão, e chama a atenção, com o seu fulgor, para o ostensivo contraste entre a casa que nos arranchava e a mansão vizinha, ampla, alpendrada , contornada de frisos e ornatos com seus janelões de vidraças que eram verdadeiros vitrais. Mamãe veio à janela que mal coube os dois e amargou comigo o mesmo contraste. Talvez sentíssemos juntos, pela primeira vez, a nossa dura realidade.

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Mas nesse tempo as casas e edificações particulares contrastavam aos olhos, mas não separavam tão radicalmente. Trincheiras não corria tão às pressas do Cordão Encarnado e a Tambiá dos Medeiros, dos Di Lascio, ambas de estilo aristocrático, não se incomodavam tanto com o casario miúdo do Róger.

A mansão dos Amorim, que hospedara Vargas em seu fastígio de ditador, belo e amplo solar convertido em supermercado, não chamava a polícia para o rapaz vizinho que, da praça em frente, tentava descobrir como aquilo era por dentro, por trás do cetim dos belíssimos cortinados. Mas aonde eu ia agora, no perigo dessa pandemia de onde dr. Burity, a irmã de Celso e a janela de Hermano José me desviaram?! Ia, sim, ao supermercado, nave de mercadorias que baixou nos anos 70 onde era a casa que tanto encantara o arrimo de família de d. Antonina. Lá, não sendo fim de semana, o espaço é mais amplo e aberto, os corredores livres, quase vazios.

E me vejo segundo da fila, onde uma senhora de meia idade me cede a vez: “Pode vir, o senhor.” Quis agradecer, ela insistiu. O moletom azul-escuro vestia, longamente, uma fidalguia simpática que me lembrou as filhas de dona Zélia Henriques.

“Quando vamos nos livrar dessas máscaras?” — foi o que me veio para agradecer. Ela sorriu, vi pelos seus olhos. E tornei pela avenida Tabajaras, não a asfaltada de hoje, mas a que Hermano José preservou coberta de flores na eternidade de sua pintura.

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