Três grandes descobertas, invenções ou criações foram, sem dúvida, o avião, a internet e a escrita. Coincidentemente, constituem elos form...

Canções sem palavras

Três grandes descobertas, invenções ou criações foram, sem dúvida, o avião, a internet e a escrita. Coincidentemente, constituem elos formidáveis de comunicação. Para locomoção material, a aeronave é imbatível no tempo e no espaço. Promoveu notável interação presencial entre povos e lugares.

A internet é outro fenômeno que impressiona progressivamente, multiplicando possibilidades, expandindo-se em capilaridade assombrosa. A escrita, quem sabe, supere todas as invenções humanas. Ainda que não se tenha domado às virtudes do Esperanto, ideia que sucumbiu desacreditada.

A palavra, engenhosidade pensada para criar e combinar sons com significado linguístico, compôs dialetos falados que posteriormente se consolidaram na escrita, e é possivelmente o invento mais esplêndido! Aos poucos, ideias germinadas no pensamento que as compõe se codificaram capazes de definir, instruir, divulgar, registrar, transmitir a história dos povos entre povos.

E da palavra se fez poesia, literatura, diálogo, criou-se um outro mundo, em nova frequência de entendimento. Cultura, ciência, filosofia, dramaturgia, religião, ficção, e muitos outros tentáculos do saber se expandiram pelas letras propulsionando a evolução. Unidos e veiculados pelo milagre cibernético, a informação, o conhecimento, a sabedoria eclodiram e transpuseram limites com magnitude inimaginável. Que seria de nós sem a linguagem, os idiomas, a fala, a escrita, enfim?

Mas além das três grandes criações mencionadas no início, uma quarta sobressai-se por juntar todas as outras: A música! Linguagem que supera idiomas e barreiras, culturais ou cronológicos e atinge qualquer um que se afine à beleza. Talvez nela se consagre a sublime união de todo e qualquer elo, em tudo o que se entende como comunicação.

Entoada em melodias, desde a grécia antiga, declamou-se em liturgia solfejada na paixão do trovador ensimesmado. E tudo prosperou, dos motetos primitivos à comédia dos barrocos; dos jubilosos corais, entre missas, oratórios, a cantatas e elegias como a Ode à Alegria, de Beethoven e a transcendental “Ressurreição de Mahler”.


Só a música foi capaz de ir além do que se escreve. Ainda que o poema multiplique a abstração, que emerge e se expande tão difuso na emoção, ela fala uma língua que atinge o mundo inteiro, sem signos que limitem o que soa aos ouvidos pois se funde à alma toda.

É verdade que letra e música caminharam por milênios enlaçadas no intuito de criar e recriar sentimento e formosura. Mas nem sempre se obrigaram na intrínseca simbiose. Livres, uma da outra, são capazes de brilhar cada qual com sua luz.

Nas canções para piano que Felix Mendelssohn escreveu, prescindiu de utilizar algo além da melodia. Era essa a intenção. Demonstrar que sem letras o canto pode exprimir o que todos compreendem, mesmo que entre si não professem a mesma língua.

Mendelssohn publicou 48 “Canções sem palavras”, em vários opus (capítulos) que permearam cronologicamente quase toda sua obra; de 1829 (com 20 anos) a 1845, dois anos antes de seu desenlace, aos 38.

Adotou o formato de voz acompanhada, à imagem do canto lírico, em que o solo tem suporte rítmico sonoro de um ou mais instrumentos, ou de uma orquestra inteira. Com admirável riqueza criativa, tais acompanhamentos não se limitam a estabelecer planos harmônicos para servir apenas de base ou recheio sobre os quais o canto se desenvolve. Nestas canções de Mendelssohn, exclusivas para piano, a voz solista se posta como tradicionalmente nos registros mais agudos, harmonizando-se com as demais camadas sonantes que volitam, juntas ou independentes, caracterizando o significado peculiar da expressão mais próxima das “palavras”, em cada conto que se canta.

O que se diz de algo, o que se narra ou se descreve, não se mostra com a precisão literária, por vezes incapazes de retratar com total fidelidade a intenção exata do narrador.

E não é esse o propósito; de ser exato, óbvio, e sim deixar que variadas sensações se multipliquem com a mais diversa volatilidade. E assim suscitar o lirismo, a ficção romanesca, a história que nos transporta pela leitura à imaginação sem fronteiras, a ideias que se promanam multíplices, em espectros que reluzem conforme ecoam na intimidade sentimental de cada espectador.


Ainda que se configurem como canto marcado pela linearidade melódica que flui amparada e em harmonia com o conjunto sonante, as canções de Mendelssohn não descrevem ou sugerem apenas poemas. Elas produzem imagens, paisagens, cenários e contextos existenciais que emanam e se propagam impulsionadas pela comoção de cada instante, desenhando-se no imaginário pessoal, da maneira mais sutil e multímoda possível.

As frases insinuam diálogos estabelecidos reciprocamente, não apenas entre a música e o ouvinte, mas com paisagens que se estampam em janelas, fictícias ou não. Desvelam conversas mágicas entre os eus poéticos que se versatilizam em profícua atmosfera, povoada com difusos pensamentos. A riqueza dos significados percebidos nestas canções se avultam na proporção do que fazem brotar intimamente. São momentos únicos, infinitamente variados, pois se transmutam cada vez que se ouvem, criando luz e imagens próprias. Não há idioma específico. Não há barreiras linguísticas ou interpretações alheias. As músicas são sussurradas muito além de qualquer sentido semântico, em segredos íntimos, particulares,
que envolvem e fundem a arte, autor e espectador numa conexão que transcende qualquer linguagem.

É aí que reside o sentido que deu nome ao mais significativo capítulo da obra pianística de Mendelssohn - As canções sem palavras!

Algumas foram nominadas por ele, como a quinta do opus 62: “Gôndolas Venezianas” . Embora a tessitura cantante sugira o balanço do barco a deslizar pelos canais da bela cidade, impregnado de romantismo desde o desenho sinuoso a muitas histórias às quais, real ou simbolicamente se ligam, outras cenas são captadas. Um dia chuvoso, por exemplo, pode fluir na direção do ouvinte, por entre a janela enevoada, com a neblina lá fora respingando. É muito próxima deste aconchego a imaginação que se esboça ao som desta canção.

Na seguinte, nº 6, do mesmo opus, a Canção da Primavera (título dado por Mendelssohn), são borboletas que esvoaçam na manhã ensolarada, bailando graciosamente pelas flores de um jardim perfumado e acariciado por resquícios do orvalho que ainda brilha. Volteiam na mesma delicadeza das notas que parecem ter a cor de cada flor, em cada asa, em cada pétala.

Na primeira canção deste opus 62, são nuvens que transitam ao longe, por um céu saudosamente tênue; umas mais iluminadas do que outras, passeiam nos arpejos em distintas velocidades.


Os contornos se alteram na medida que desfilam, dentro ou fora do sentido. Nada disso está explícito em palavras, mas é dito com a clareza que ecoa na emoção.

Na opus 67, nº 2 , um casal de abelhas em colóquio e circunlóquio perseguem-se voejantes rumo ao néctar que emerge da poesia que as atrai. O ritmo que sustenta o canto rodopia ondeante na doçura que aflora, e as frases acompanham o bailado que se agita na mais pura floração.

A canção Opus 85, nº 4 , é um diálogo com as coisas do passado. Reflexões sobre o que se fez, ou não se fez, vêm à tona Ora resignadas pela compreensão existencial mais ampla, ora com nostálgica lacuna da frustrada incompreensão de suas razões de ser. Reminiscências tão antigas, mescladas de ternura, nostalgia e saudades que suplicam ou se acalentam com grata intimidade. Do amor que tudo cura, tudo vence e supera, na arte que se ouve com tamanha perfeição.
Algo que foi dito, ou deixou de ser falado, também se evidencia na canção a recordar um passado que dormia, mas que agora vem à tona em sublime harmonia.

Na canção opus 102, nº 5 , que leva o nome de “peça infantil”, todas as brincadeiras infantis são recontadas. Crianças saltitantes, serelepes ressuscitam, se renovam em correria no seu mundo colorido, capaz de ser vivido novamente em melodia.

Há também as confidências percebidas nas “palavras” da canção opus 102, nº 4 : “Eu bem que te avisei, quis dizer e não me ouviste. Insisti, fiz-te ver que o amor era o caminho, mas a vida separou rumos que se prometiam”… Com afetuosas ponderações, tais confissões traduzem a paixão contida no que oportunamente revelam estes momentos de sincero desprendimento. Há pedidos de desculpas sutilmente compensados na certeza de que tudo foi esclarecido e mantido num futuro esperançoso.

Na opus 67, nº 6 , inesquecíveis valsas dançadas quando enamorados surgem com a nitidez de então, trazendo toda a graça coreografada nos envolventes compassos que avivam o dourado anos que passaram, mas que nunca se esqueceram.

Reverências corteses ao estilo igualmente dançante da canção opus 62, nº 4 , remontam ao período dos minuetos, das danças de salão, ornamentadas ao estilo mais rebuscado, tanto na indumentária como nos cavalheiros gestos de outrora. Falam-nos de uma delicadeza que se perdeu no tempo da vida moderna, mecanicamente árida, veloz e portanto agressiva, sobretudo quando ouvidas nos dias atuais.


Fôssemos falar de todas estas peças, infinitas seriam as possibilidades de descrever tudo o que nos dizem as Canções sem palavras. Haveria o que contar a cada dia, a cada instante, por anos e décadas a fio, tal como criadas há quase dois séculos. Não seriam assim tão ricas se houvessem sido escritas, sem a liberdade que se abstrai no sentido que projetam.

Idiomas nasceram, idiomas morreram. Dialetos se extinguem, serão outras línguas mortas. Mas a música ultrapassa qualquer letra sem ter letras. E o canto sem palavra que aqui foi mencionado, viverá, reviverá, nascerá, renascerá em qualquer povo e lugar, sem amarra nem escudo, entoando com clareza a linguagem que supera as fronteiras da grafia porque fala ao coração.

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  1. Muito bom. Certa vez flagrei una furtiva lacrima no rosto de minha sogra quando pensava que apenas eu ouvia o concerto de Haydn. De outra feita foi no rosto de minha nora, no que eu ouvia Albinoni. Do outro lado, aquela alegria louca a que leva um frevo. O sentimento épico causado por um hino nacional. Uma proposta minha que o maestro Kaplan não aceitou: levar ao coral da UFPB o Bolero de Ravel com versos que eu fizera contando a história de Lênin: "No teria la misma riqueza de timbres". "Mas nem com solos de sopranos, tenores, quartetos, o coro?" "No, no, no!" Você tem razão: a música diz o indizível. Que seria da cena em que o pai de Scarlett O´Hara diz à filha que se apegue à terra e deixe casinhos de amor de lado, com o que ele põe a mão em seu ombro, temos uma zoom mostrando-os em meio à beleza da fazenda que lhe deixaria... enquanto a música de E o vento levou diz o resto? Você menciona "A Ressurreição" de Mahler. Caramba, como foi esmagadora a sensação que tive ao ouvir meu pequeno poema, no final do "Oratório", na semana santa de 2005, quando o vi estupendamente realçado por essa obra-prima, interpretada pelo coro e orquestra que a Prof. Ilza Nogueira! É sempre muito bom vê-lo traduzindo... em palavras, obras que o deleitam em especial, Germano Romero!

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    1. Maestro Solha, bom mesmo é ver estas emoções musicais transcritas para as letras ecoarem no seu espírito ensimesmado pela Arte. Abraço!!

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