"Quem enfrenta monstros deve permanecer atento para não se tornar também um monstro. Se olhares demasiado tempo dentro de um abismo, o abismo acabará por olhar dentro de ti”.
A frase de Nietzsche me vem à memória a cada novo episódio da batalha campal em que se converteu a política brasileira.
Há monstros – monstros a mancheias. E temos nos detido longamente a contemplá-los. Acompanhamos seus movimentos, observando as manobras que nos revoltam, as ofensas ao país e as traições à confiança depositada nos homens públicos. O problema é que, ao seguir atentamente a ação dos inimigos da pátria, lentamente começamos a pagar o tributo ao abismo.
Aprendemos não só a odiá-los, mas, sem nos dar conta, passamos a lhes imitar alguns gestos de baixeza. Já não nos basta a justiça. Desejamos também vingança e bofetada. É catártico.
Quase imperceptivelmente cedemos aos excessos emocionais, às palavras duras e à santa ira. Nem nos demos conta de que o ódio não é cultivado sem consequências. Ele contamina o cotidiano e se revela na irascibilidade onipresente, na impaciência generalizada, no cinismo e na exasperação que nos domina.
O perigo destas é que são práticas viciantes que não se limitam a episódios isolados. O ódio é insaciável e tem lá sua sedução.
Nossa fragilidade perante o abismo já havia se traduzido em cusparadas e nos recorrentes episódios de agressões verbais em restaurantes, hospitais e no plenário dos tribunais e das casas legislativas. Há tempos a violência saltou da rede virtual para a esfera física.
É uma espiral voraz. Uma desgovernada máquina que mói reputações, destrói antigos aliados, aprofunda divisões e implanta o reinado de uma brutalidade que nos rebaixa. O maniqueísmo impera, já não há limites éticos para os ataques e os raciocínios tornam-se mais e mais primitivos.
Cá estamos nós copiando monstros, espiando abismos.
O que há de mais terrível nisso tudo não é o mal físico que os monstros nos fazem, mas os danos que infligem às almas desatentas. Pior que as astronômicas quantias roubadas, os comportamentos desprezíveis dos poderosos e o escárnio dos que se julgam intocáveis é nos darmos conta que também nos foram subtraídos os traços da civilidade. Sem perceber, muitos de nós se converteram em lobos, escravos dos impulsos e órfãos de virtudes.
Lamentáveis são a corrupção e as indignidades dos homens públicos, mas tão grave quanto estas é a perda do freio ético que faz o cidadão ter pudor de flertar com a banalização do mal.
A História nos lembra outras vítimas do abismo. Não foram poucos os que, descuidados, cruzaram a tênue linha que separa o indignado do bárbaro. O terror na Revolução Francesa, o assassinato das crianças Romanov, as humilhações públicas na China de Mao são demonstrações cabais do descontrole. Basta a primeira pedra e rolam pelo chão séculos de aprimoramento social e racionalidade.
Os antigos gregos tinham uma palavra para designar a desmedida do gesto, o momento em que o pé ultrapassa a linha que demarca o razoável: hübris. Ela também marca este nosso tempo e tem efeito semelhante ao do álcool: intoxica os espíritos, obnubilando o senso.
A hübris é filha dileta do orgulho e do desprezo às leis. Marcada pela violenta paixão, não raro era duramente punida pelos deuses justamente porque avançava sobre o espaço alheio e os desafiava em seu território. Os modernos deuses da justiça também a isso punem – convém não esquecer.
O antídoto grego para a hübris? Sofrosine, a moderação e o autocontrole. Sob seu domínio, a discussão política, a natural indignação e o desejo de justiça vicejam sem que nos convertamos em desequilibrados caricatos.
O abismo já nos olhou de volta.
A barbárie espreita. Urge escapar às suas fúrias.