João Cabral de Melo Neto repetia à exaustão que existem dois grupos distintos de poetas: os que escrevem por excesso de ser e os que escrevem por carência de ser. Os primeiros, conforme o autor de “A Educação pela Pedra”, articulam um discurso caudaloso, torrencial, sempre na primeira pessoa do singular, enquanto os últimos são comedidos, avaros, no que diz respeito às efusões líricas, além de converterem o poema num complemento, num acessório, num ponto de equilíbrio que lhes confere uma certa sensação de completude.
A contrapelo, substantiva, a poesia de João Cabral lembra o atrito de pedra contra pedra, filiando-se ao segundo grupo, embora quando discorresse a respeito do desempenho dos toureiros, dos artistas plásticos e dos poetas, o eu-lírico falasse sobre si mesmo, dado a sua incapacidade de se “outrar”. Em outras palavras, Cabral foi um lírico disfarçado, um lírico que se cumpria por vias transversas, pois, passando a falsa impressão de que falava sobre os outros, falava, na verdade, a respeito dos seus mecanismos de criação, a propósito dele mesmo, conforme ratifica o diálogo que manteve com o psicanalista espanhol López Ibor: “Levei-lhe o volume ‘Duas águas’ que ele leu e comentou dizendo: ‘O que me impressiona é a sua obsessão pela morte! ’ Eu retorqui: A morte de que eu falo não é a rilkeana, é a morte social, do miserável da seca, no mangue, não é a minha. E ele disse-me uma coisa engraçada: ‘Aí é que o senhor se engana: o senhor fala em morte social para exorcizar o seu medo da morte”. E concluiu João Cabral: “Realmente tenho muito medo da morte”.
A professora e ensaísta Selma Vasconcelos, no livro “João Cabral de Melo Neto – Retrato falado do poeta”, acolhe um lúcido depoimento de Ferreira Gullar sobre a relação entre o homem Cabral e a poesia: “A razão da poesia de João Cabral é esta que já falei dele, psicológica inclusive, necessidade de ordem numa pessoa que tem uma fragilidade interior muito grande. Ele então se constrói, porque o mundo é inventado por nós, nós somos invenções nossas, nós nos inventamos, então João Cabral inventou o contrário do que ele era, ele se inventou um poeta racional, objetivo, equilibrado, formal”, conclui o autor de “Poema sujo”.
“A Hóstia pela metade”- Julguei, num primeiro momento, que o título “A Hóstia pela metade”, de Carlos Kahê, reunia poemas de concepção barroca, pois se parte da hóstia fora extraviada para viver, quem sabe, uma experiência mundana, temporal, profana, a outra metade permanecera cumprindo o ritual sagrado da eucaristia. Equivoquei-me, uma vez que não se trata de um livro de poemas marcantemente barrocos, embora a maioria quase absoluta dos livros – incluindo, aqui, o de Kahê –, independente do gênero e da época em que tenham sido lançados, registrem o conflito, a dialética tensão do homem entre o sagrado e o profano. Claro, não estou aqui sustentando a vetusta tese de um barroco atemporal, de um romantismo atemporal ou de qualquer outra periodização literária atemporal, hipótese já devidamente arquivada pelos estudiosos da literatura.
O título também me sugeriu se tratar de um livro cujos poemas, de fatura hermética, não permitiam uma comunhão efetiva e plena entre o eu-lírico e o receptor. Ledo engano, já que os poemas de Kahê primam pela comunicação imediata, direta, livre da interferência de todo e qualquer ruído que possa comprometer a leitura fluente que eles nos proporcionam. Só posteriormente é que me dei conta: o título do livro, Kahê o extraiu do último verso do último poema: “(...) Ninguém entra numa comunhão pensando em comer a hóstia pela metade”.
Pois bem. Levando-se em conta a distinção estabelecida por Cabral entre os poetas que escrevem por carência de ser e os que escrevem por excesso de ser, creio que Carlos Kahê pertence ao segundo grupo no que esse possui de caudaloso, de transbordamento, mas também – e aqui contrariando a tese cabralina – do propósito de converter a poesia numa espécie de ponto de equilíbrio para neutralizar a sensação de “não estar de todo”, procedimento usual de todos ou quase todos que escrevem, e não só dos que criam por carência de ser, como quer João Cabral de Melo Neto. Inclusive, é bom lembrar que Fernando Pessoa, apesar do discursivo heterônimo Álvaro de Campos, já dizia (cito de memória) que “A arte existe porque a vida por si só não é suficiente”.
Guardadas as devidas proporções, a poesia de Carlos Kahê possui alguma similitude com a dicção loquaz, agônica, de um Augusto Frederico Schmidt, com a dos poetas que se gastam “de dentro para fora” e cuja dicção lírica se perfaz a partir dos “seus desabafos e de suas circunstâncias”.
Enfim, vale a pena a leitura de “A Hóstia pela metade”, lançamento da Kotter Editorial, Curitiba, Paraná, 2020.