Desde muito, Bené Siqueira (na trilha em intervalo das figuras de Kleber Cruz Marques e Walter Rabello dos meus breves tempos de Liceu) se impõe no meio escolar entre os melhores professores de Matemática, daqueles que conseguem abrir a cabeça mais obtusa para a intimidade com a disciplina.
Guardei seu nome desde um cruzamento de corredor oficial, não sei mais se da secretaria de Educação ou de Palácio, ele passando rápido, bem moço ainda, no avermelhado do rosto, no tamanho de quem ainda faltava crescer e com jeito e feições de quem fora levar, e não pedir, lembrando-me um militante infatigável do antigo foro, o dr. Renato Bastos, personagem do meu Café Alvear que, num de seus rompantes, lançou-se candidato a governador em protesto à candidatura única de Flávio Ribeiro, em 1956.
- Quem é esse, hem Luizinha?
— É Bené, professor de Matemática dos meninos do dr. Tarcisio.
Rola o tempo e, vinte anos depois, venho encontrar o professor Bené vizinho de cima do prédio onde passei a morar. A matemática em pessoa, seja como professor ou como homem de hábitos sistemáticos, desde o ginasta da caminhada matinal à presença em classe ou no trabalho. Mensalmente uma visita ao convento de Ipuarana, em Lagoa Seca, onde foi acolhido, migrando, ainda menino, dos carrascais do Piauí.
Desse convento de frades alemães que alicerçou o futuro de muitos notáveis da vida secular, sobrevivem, mercê de Deus, dois ou três monges que mal andam, vendo o mato crescer onde antes cultivavam a terra e o pomar do próprio sustento. E lá vai Bené, todo mês, feita a coleta da cesta básica entre antigos colegas, pagar o foro do terreno em que os santos frades plantaram as bases do seu futuro. Sem sacrifício nenhum, na felicidade de sua gratidão e, de vidros baixos, mandando entrar o ar da serra no mirante que se abre para o planalto onde fica, mais em baixo, o mosteiro.
E mais que isso: fazendo versos, saltando a cerca da matemática para cometer seus exercícios poéticos. Mas sem trair sua grande aliada, suprema no dizer de um servo maior como Bertrand Russell, mas que via a matemática de “uma beleza fria e austera, como a da escultura”.
Bené tenta quebrar essa frieza com alguma “intersecção nos espaços do prazer” justamente quando fala de ângulos: “No ângulo agudo tudo pode acontecer”, culpa, certamente, da “sensualidade angular no teu andar”. E segue nessa servidão de “passos lentos e congruentes”, verso após verso, sem tirar o sentido da matemática.
Publicado n'A União, em 14/04/21