Um ano de COVID, de descaso e crueldade psicopática em nosso país, um gozo extremo em milhares de mortes, e os vivos que se perdem em lágrimas de dor e espanto. Um ano de medo e insegurança, que nos leva aos primórdios da sobrevivência. Mas tudo não passou impunemente, gerou filhos, como Hades, que se tornaram alimento.
Em Santo Agostinho, há uma citação sobre a definição de maldade: “uma perversão da vontade desviada da Substância Suprema: Deus”. E, reconhece que cada coisa se adapta perfeitamente, não só ao lugar, mas também ao seu tempo. Contemporâneo... e absolutamente verdadeiro.
Com a repetição, a fala nos leva ao autoconhecimento, e a vivência do isolamento, aprimorou ou destruiu o sentido do existir, no seu pleno entendimento.
Há o tempo de sorrir, há o tempo de chorar, encontramos em Eclesiastes, e a tolerância? Ela nos faz alternar propositadamente os tempos verbais desse texto, passado e presente, pois nada passa.
A paciência “Patientia”, vem do latim, significa dor, agonia e desespero, a palavra deriva do verbo “Patior”, que significa apatia. A junção dos termos seria então: a arte de sentir e saber suportar as dores impostas pela vida. Se usássemos uma linguagem psicanalítica descobriríamos um sinônimo apropriado: Acomodação (porque, mesmo assim, há um ganho secundário, um prazer em manter tudo numa quase imobilidade).
A distância nos custou bem mais que um ano nas nossas vidas, as rugas não são proporcionais, a cor das nossas faces não lembra as maçãs, as nossas articulações se ressentem da falta de movimento, e o mais grave, a solidão e o silêncio, se tornaram hóspedes definitivos. Perdemos junto todos os prazeres que enchem os nossos olhos... a saudade nos submete e escraviza...
Clarice Lispector escreveu sobre o medo e a liberdade, especificamente o medo da libertação em “De escrita e vida”:
"Se eu demorar demais olhando Paysage aux oiseaux jaunes (Klee), nunca mais poderei voltar atrás. O hábito que temos de olhar através das grades da prisão, o conforto que traz segurar com as duas mãos as barras frias de ferro. A covardia nos mata, olhando a extrema beleza dos pássaros amarelos, calculo o que seria se perdesse totalmente o medo".
Ela magistralmente expõe a ambivalência sobre medo e a liberdade, e nos bastidores não escritos a tal da acomodação acompanha o desenrolar do conflito.
Às vezes, “no através de minhas janelas”, vejo imagens reais, as orquídeas desafiando o limite da beleza, o verde da falésia, a lua encantada quando cheia, desfocada pela tela do apartamento. Constato o privilégio do conforto físico e da solidão que toma forma, se disfarça de trabalho, leituras, tv, aulas de francês, tarefas domésticas, gatos-filhos que posso abraçar e beijar.
E a falta? Nos remete a Lacan... e o essencial? é o afeto, o toque, o convívio com nossos pares, o som bem vívido das risadas com amigos muito queridos, imagens presas nesse olhar sem brilho!
A ausência do meu filho tornou-se uma dor física, pré-cordial (com grafia errada para separar bem a intensidade), pois a filha com comorbidade e sem vacina, enfrenta o risco e a adrenalina para me ver, com meus amores e todas as restrições. Não brinco mais com meu neto caçula, não acompanho cada evolução, cada palavra descoberta… momentos só para sonhar.
E voltando às minhas leituras, encontro a melhor resposta em T. Elliot: No princípio Deus criou o mundo, ermo e vazio. E havia trevas sobre a face do abismo. Os homens se arremeteram contra Deus, em sua vã cegueira, porque o homem é uma coisa vã, uma semente ao vento de um ou de outro modo arremessado, sem jamais encontrar pouso ou sítio à floração propício.