Teve sim, esse momento de não lhe ser tão difícil mover-se na escuridão quanto raciocinar dentro dela. Segundo disse, foi num quase surto, quando se apercebera, por fim e de repente, que uma parte de seu eu viera precocemente se esvaindo naquele turbilhão de horas mortas — no meio de uma palidez de lajedos mergulhando em resfriamento profundo e crescente anulação de presença, mas até um último momento permanecendo capaz (aquela palidez) de fornecer algum contraste a olhos já então mais adaptados, denunciar uma lança espectral de gravatá, ou a sombra sem fundo de uma garganta de pedra —, e após o descortino do vulto lânguido e esguio de um lobo.
O animal estava bem ali, sobre um parapeito de rocha, a pouca altura da base do lajedo. Por trás dele, o enorme monolito servia de qualquer forma como um fundo que ajudasse a melhor enxergá-lo, e então percebeu o animal movendo-se, mas de modo a ter equilíbrio na escarpa. Inseguro, tentava firmar as patas dianteiras, compridas e finas, nas bordas do rochedo, e Adolfo acompanhando, imóvel, os movimentos desajeitados que o animal fazia com elas, por um momento achou que o animal estivesse doente, porque as esfregava na estreita mureta de pedra, e agindo assim dava uma impressão de o fazer não para equilibrar-se nas quatro patas, juntamente na mesma estreita faixa, mas, antes, como se cedesse à compulsão gerada por alguma crise aguda de artritismo.
Percebeu como o Lobo-Guará havia arqueado ao máximo a própria envergadura, o que lhe permitia restringir no comprido essa envergadura também ao máximo, e desse modo concentrar, num equilíbrio difícil, as quatro patas o mais juntas possível, e viu, por fim, quando o animal baixou a cabeça na direção da base, como se fosse saltar em sua direção, mas ao invés disso, e já aproveitando aquele primeiro posicionamento de ajuste, sequenciou sua ação entrando num repentino e não menos desajeitado movimento de rotação – quase ao mesmo tempo em que soltou um ganido curto, mais parecido com um ladrido de profundo ultraje e reprovação –, volteando a cabeça como uma guia nos sentidos para cima e para o lado, arremetendo-a como uma força de arranque que logo contaria com a propulsão das patas, que se retesaram e o lançaram por inteiro num salto para trás, girando sobre si mesmo e desaparecendo numa grande fenda por trás da saliência.
Pensava no ganido do pobre animal, conforme disse. Sentia algo estranho, como se aquele bicho o tivesse acusado de alguma coisa, melhor, estivesse acusando, pois aquilo ficou ecoando, e o diabo é que, às vezes, disse ele, sua consciência fazia coisa desse naipe. Correram-lhe então as inevitáveis lembranças de sua juventude distante e desadorada1, enquanto tentava acertar os passos na trilha.
Disse que ficou lembrando as festanças, os amores desbragados. As grandes cavalgadas que os Brito (Breitt) faziam à cidade de Flores do Pajeú, invadindo o povoado com seus fogosos corcéis, os reis das apostas de prado. As donzelas riam-se espremidas em janelas, moças de família que, provavelmente, teriam visto jamais um homem nu. E disse que ali, como sempre, depois de tantas e boas recordações, acabaram lhe vindo à mente o nome e a imagem odienta de Padre Quaresma.
A prisão e os aviltamentos. O nome do miserável soando entre as chibatadas que levou, a libertação e a vingança. E foi quando sentiu a mente turvar-se e fez uma parada forçada. Lentamente começou a encher os pulmões, até sentir-se inundado pelo ozônio do Jabre, e só então retomar a caminhada.
Embora isso não lhe tenha ocorrido no início, fortuito, não exatamente deliberado, quando começou a frequentá-la (a noite) porque já então se impusera (a noite) como um prolongamento, quase inevitável, daqueles últimos tempos particularmente difíceis para quem, como ele, ostentou sempre bigode macio e farto da hera sanguínea de Richard Breitt, seu velho avô inglês,
Pro mode que a mais recente e frágil simenteira do amor, ande como sempre a crescer bastante junta do aranzé (das velhas e retorcidas raízes) do ódio, e pro mode de está bem longe o dia em que pro via disso, daquilo outro, não venha a prevalecer desde o ronconcón das eras esse istrupício de grandeza só e só basiada em força bruta, embora eu não estranhe nada Conforme me foi dizendo Vossa mercê me desculpa, se não há de chegar esse dia em que as paredes falarão com a gente, cuma bem dixe meu amigo rezador Quem Zé de Mocinha, o rezador. Ele deu um peba e nós passamos lá outro dia pra beber umazinha Quem pegou Ora, mas está bom, basta, Zé de Mocinha, com oxílio dos cachorro Rompe Ferro e Rompe Nuvem.
Começou então a dizer que ainda vai ter um dia em que as gentes da outra banda da terra vão dá de aparecer na parede e falar com nós cá, e pior: vão fazer isso sem sair de lá, e que a gente tombém – o moço agora não se espante: vai estar lá sem sair daqui, e ele falando e falando, até que eu lhe dixe Zé, cê deixa esse mau costume de tomar mecha de fumo que isso está a te comer o juízo, mas respondeu ele sem medo de estar errado que cousa dessa natureza, uma vez entrasse na constelação do evento não adviria de cosar espanto a ninguém, bastando se tomar tento e não querer ver aquilo nem cuma parte de Deus nem do diabo, e sendo mais ou menos feito uma missiva chegando na mesma hora do despacho, já com o retrato se bulindo e a fala nas oiça, entonce lhe preguntei se o povo conhecido do mundo ia agora dá de virar santo para começar a aparecer longe do lugar adonde veve, conforme Maria Ontina, lá da Piedade, até hoje jurando que viu e proseou com Santo Antonio, mas Zé de Mocinha tornou a assuntar, disse Adolfo Ele dixe que na era do advento o mundo ia ficar entupido de pecador, que era todo mundo querendo ser bom mas a lua faltava uma banda, mas que pro mode disso Coronel ia deixar de mandar prender e bater, de fazer pobre tomar cristel de pimenta, porque o mundo ia virar um fuimiguêro só, e ninguém de bom juízo havia de querer ser apanhado no marfeito.
Me dixe ter visto isso num sõe, atente bem.