Escritor, pacifista, professor de História da Arte na École Normale de Paris e de História da Música na Sorbonne, membro da Academia Francesa de Letras, biógrafo e músico, o francês Romain Rolland ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1915. Admirado e citado por Gramsci, Herman Hesse e Freud, com quem se correspondia, foi autor de quase 100 livros, entre romances, dramas, novelas e biografias como as de Tolstoi, Hugo Wolf, Beethoven, Haendel, Michelângelo, ensaios sobre Rousseau, Swami Vivekananda,
Empédocles, Danton e robustas coletâneas em torno da literatura operística e musical.
Romain Rolland era grande apaixonado e conhecedor de música, arte que lhe provocava transcendência mística. Defendia a religiosidade como “sentimento oceânico”, expressão forjada em carta a Freud, com quem costumava debater sobre os transes extáticos relacionados com a “sensação de eternidade, de algo ilimitado, infinito, um vínculo indissolúvel com o universo”.
Rolland identificava este “sentimento oceânico” como fonte de energia espiritual que permeia todas as religiões, experimentando-o fervorosamente na música.
Quando o compositor alemão Richard Strauss (Baviera, 1864-1949), conhecido como o “Poeta Sinfônico” pela beleza de seus poemas tonais, estreou “Uma vida de herói”, em Frankfurt, no ano de 1899, Romain Rolland, amigo que estava presente, relatou:
“Vejo pessoas a tremer e quase se levantam em determinadas passagens. No fim, durante a ovação e a entrega de flores, soam os trompetes e as mulheres acenam os seus lenços”.
Que qualidades teria uma música para causar reações como esta, não apenas nas plateias, mas principalmente em alguém como Romain Rolland? Sem dúvida, sobretudo, a beleza!
Richard Strauss maravilhou o mundo com 10 magníficos poemas sinfônicos, forma musical caracterizada por aludir a enredos vários, como lendas, astronomia, mitologia, sátiras, tragédias, obras de arte, paisagens, povos, nações, romances, poesia. Alguns se classificam como música descritiva ou programática, e diferem da chamada música absoluta, pura, sem uma intenção premeditada. Ainda que ambas sejam subjetivamente capazes de sugerir e provocar emoções tão variadas quanto criativas.
A relação entre a música e outras formas de arte é muito antiga. O balé reúne enredo, coreografia (dança), cenário e música orquestral. A ópera, peça expressivamente ainda mais rica, une literatura (libreto), dança, arte dramática (teatro), música sinfônica, canto lírico e cenografia. Há outros exemplos de ligação entre literatura, pintura, belezas e fenômenos da natureza que se intensificaram, do período romântico em diante, por compositores que quiseram narrar histórias, descrever paisagens, falar de um quadro, transformar imagens e acontecimentos reais ou imaginários em música. Peças como Les Boréades (tragédia lírica de Rameau), As quatro estações (Vivaldi), Amor em Bath (Haendel), A Pastoral (Beethoven), Sinfonia do Novo Mundo (Dvorak), Minha terra (Smetana), Enigma (Elgar), o Quebra Nozes (Tchaikovsky), grandiosas sinfonias de Mahler, Shostakovich, Sibelius, Bruckner e Scriabin são admiráveis transcrições capazes de refletir a riqueza e o poder da imaginação e do sentimento, íntimo ou cósmico.
No poema sinfônico, o caráter descritivo se notabiliza ao detalhar com mais unidade e riqueza de elementos o assunto que aborda. Há, entretanto, poemas cujas narrativas são fruto do imaginário pessoal do compositor, como “Uma vida de herói”, de Richard Strauss, que extasiou plateias do mundo ocidental e pessoas como Romain Rolland.
De uma originalidade ímpar, construído em caráter audaciosamente moderno, sem se afastar da essência romântica, este poema eleva a música em primeiro plano e restringe a descrição narrativa a importância secundária. A história se resume ao perfil de um “herói”, personagem intensamente presente em inúmeras peças da literatura e dramaturgia clássicas antigas. Mas, neste caso, o protagonista é inédito, imaginado pelo próprio compositor, representando mais uma personalidade do que um personagem.
Para descrevê-lo, Strauss dividiu “Uma vida de herói” em seis partes:
I - O herói (Der Held)
II - Os adversários do herói (Des Helden Widersacher)
III - A companheira (Des Helden Gefährtin)
IV - As batalhas (Des Helden Walstatt)
V - As obras de paz do herói (Des Helden Friedenswerke)
VI - Saída do mundo, consumação e transcendência (Des Helden Weltflucht und Vollendung)
Na primeira, a figura central é emoldurada com traços completos do espírito heróico em enérgica construção musical que evoca suas virtudes e características mais marcantes da entidade a ser narrada .
E a música assim desfila pelas nuances da personalidade do herói entre ternas, gloriosas e agitadas passagens em torno do tema que se reapresenta sempre destemido e conclui-se com merecida vivacidade.
Na seção seguinte são mencionados os adversários do herói. Os invejosos, falsos, os rivais e obstáculos por eles criados simulam-se com diálogos irrequietos, entre sopros e tubas, sarcasmo e ironia nos contrastes jocosos de graves e agudos. Há quem suponha que Strauss também se refere aos críticos de arte maldosos que dificultam a carreira dos artistas. São considerações que o deixam pesaroso como se ouve no trecho a seguir . Em meio a tudo, o tema heroico inicial aparece constantemente ao fundo, nos baixos e cellos, infundindo respeito e reiterando sua soberana preponderância.
Na terceira parte, surge a figura da companheira que se introduz com a devida importância em sua vida. As nuances da relação soam, a princípio conflitantes, como acontece entre casais, com o violino representando o ente feminino, sutil, às vezes irritante, provocativo, dialogando com o companheiro na voz dos metais com cordas, em tons bem mais graves .
A conversa prossegue oscilando entre divergências e bom entendimento, mesclada com pitadas afetuosas que também revelam momentos de doçura da companheira. Embora logo se “desentendam” como se ouve no agitado temperamento feminino sempre ponderado pelas respostas graves e compreensivas do herói nas cordas e metais . Alguns amigos de Strauss identificaram nos temperos e destemperos femininos uma referência à própria esposa.
Nesta parte dedicada à companheira, assim como em outras, o violino é bem valorizado com instigantes passagens de complexidade virtuosística e algumas dissonâncias, em plena liberdade tonal. Os solos mais extensos podem até ser interpretados como uma verdadeira cadência .
Ao fim da exposição deste rico e intenso fraseado entre o herói e sua companheira, é o amor que prepondera como esteio importante para os desafios e conquistas de sua trajetória e se consagra com incrível beleza e paixão .
O colóquio assume ares de confidências amorosas e soam como declarações de afetuoso lirismo enunciadas no oboés, clarinetes, trompas, imantados na harmonia das cordas em uníssono . Curiosamente, “os adversários do herói” (da parte 2) “beliscam” a cena final ao se concluir em absoluto clima de paz .
O leitmotiv, expressão atribuída ao elemento, tema, frase que se repete ao longo de uma peça sinfônica, faz-se presente nos poemas como característica da forma. Tal como na literatura, é traço muito constante no poema sinfônico. As reaparições conferem unidade ao tecido musical e moldam a personalidade do romance. Este modelo de recorrência temática muito usado por Wagner e outros compositores de ópera é inserido com maestria, nos instantes propícios mantendo os elos entre as diversas abordagens da narrativa. Em Uma vida de herói, o leitmotiv ganha destaque maior, porque além de variado se emula por todas as seções, alternando as matizes que as distinguem assiduamente, ao longo de cada fragmento, sobretudo no arremate. Este artifício oferece colorido especial ao poema, mantendo os assuntos não apenas lembrados permanentemente, mas integrando-os em “hibrida” homogeneidade.
O ápice orquestral se nota obviamente na ilustração dos campos de batalha do herói (4ª parte), que no enredo se referem às lutas por ideais e causas nobres. Os embates são inicialmente anunciados pelos metais distantes do palco, que se mesclam com a reexibição do tema principal, com relevância extraordinária neste borbulhante trecho. A frase exibe-se repetidamente com matizes e timbres diversos, ora fragmentada, ora inteira, com a imagem do herói surgindo em palras contrapontísticas artisticamente bem entrosadas .
Agora a atmosfera invoca o personagem a enfrentar o combate. Toda a orquestra conclama os cenários de luta, com ritmos freneticamente marciais, permeados por pequenos excertos dos temas de partes anteriores .
O espetáculo se intensifica para cumes de sonoridade feérica condizente com o panorama de duelos e contendas, ao som de tiros em uma pirotecnia de percussões poucas vezes vista no mundo sinfônico .
A densidade sonora se espirala em hemiciclos e culmina apoteoticamente com a mais esfuziante aparição do tema protagonista que descerra as cortinas do cenário de batalhas .
Sem intervalo, o quinto movimento começa por enunciar as conquistas de paz que advêm dos desafios destes embates, estrondosamente encenados. Desfilam sequenciados e cravados como emblemas apregoados pelos tímpanos em um mural de vitórias.
Um interlúdio súbito , inquieto e agitado separa o clima bucólico que se instaura pelas harpas, seguidas de suaves e poéticos fraseados melódicos nos sopros e cordas a se entrelaçarem, fazendo emergir sentimentos de consciência serenamente tranquila pelo dever cumprido em suas obras de paz .
A exposição dos feitos heróicos se conclui com solos mais extensos, ainda com ares de elegia, e se conecta imediatamente à última parte.
Eis de volta o suspense, agora mais intimidador. É chegada a hora de, após o dever cumprido em uma vida agitada e plena de realizações, retirar-se de cena. A volta do interlúdio da seção anterior pressagia o que acontecerá e a angústia da fatalidade se estampa perante a iminente despedida .
Mas a resignação sobrepõe-se e a calma se instala nos solos crepusculares do corne inglês, que se revezam com cordas que anunciam a aurora grandiosamente sublimada. É o adeus de um herói resignado e convicto dos feitos exitosos da trajetória terrena. Silencia a orquestra e ouve-se um dos momentos de maior transcendência lírica na obra de Richard Strauss. O herói - que para muitos é auto-retratado pelo compositor - despede-se do mundo emocionado pela visão retrospectiva de uma existência proveitosa e profícua .
Para concluir o poema, após suspense introdutório do mesmo interlúdio já exibido nesta e na seção anterior, ora mais trágico e intenso, estabelece-se o enternecedor diálogo final. Como se o herói conversasse consigo, com suas memórias, com sua amada, com sua vida, na fusão de seu eu com o passado, presente e o futuro que se descortina inexorável.
As falas se abrem com o violino suave e romântico, quiçá referindo-se ao amor que desfrutou com sua esposa, respondido pela trompa, no mesmo tom, reiterada docemente por fagotes, oboés e clarinetes em colóquio comovente que progride se alternando entre os três timbres .
Chega, então, o epílogo, possivelmente uma das mais encantadoras conversas musicais da era romântica. Trompa e violino se comunicam divinamente a confessar toda a poesia imaginada pelo autor para descrever o magnífico trabalho. Entre eles não estão somente o herói e a companheira, como dantes o fizeram, mas a existência completa de um personagem ricamente imaginado .
Por fim, a consagração divinizada no extasiante desfecho ao estilo de Assim falou Zaratustra , outro grande poema sinfônico deste compositor que fez o gênero atingir o ponto culminante, glorificando-o como modelo mais requintado de narrativa musical, e a si próprio igualmente como um herói. Um herói capaz de nos fazer navegar em sua música com “sentimento oceânico”, a “sensação de eternidade” tão bem definidos por Romain Rolland como “vínculo indissolúvel com o universo”.