Agora tomo um trem imaginário para Florença, após deixar os canais venezianos para trás. Busco não a Florença turística, ao alcance de qualquer um, mas uma Florença especial, a da literatura, que há tempos a vem adotando como pano de fundo — e também como personagem — de tantas obras relevantes. Tive o privilégio, como tantos outros, de visitar a cidade de Dante e de Maquiavel mais de uma vez, admirando a beleza da velha urbe, sua história, sua arquitetura e sua arte.
Mas o melhor passeio que fiz e continuo fazendo por suas ruelas, igrejas e praças centenárias é através dos livros que as evocam, porque estes, tal como aqueles que têm Veneza como sede, trazem-me, mais que as fotos e as lembranças banais, aquilo que chamo de “atmosfera”, uma certa sensação ou um certo sentimento nostálgico daquela cidade ímpar, berço e cenário de tantas histórias reais e fictícias, povoadoras de minha imaginação mais sensível e criativa. Nesses livros, vou e volto a Florença, e mais ainda: vou e volto às profundezas de mim mesmo, se é que isso é possível, tão raso me considero, sem falsa e dispensável modéstia.
E quais são esses livros que escolho dentre tantos para a evocação de Florença? Apenas quatro, sem demérito para os demais que ficarão de fora. Primeiro, “Uma janela para o amor”, do inglês E. M. Forster. Depois, “Uma paixão em Florença”, do também inglês W. Somerset Maugham. Em terceiro, “Horas italianas”, do norte-americano naturalizado inglês Henry James. E, finalmente, “Florença – Um caso delicado”, do norte-americano David Leavitt. Os dois primeiros são romances e os dois últimos, ensaios, todos saborosos, como se espera de obras assim, que remetem a uma paisagem singular.
Uma primeira observação ditada por minha experiência pessoal: diferentemente de Veneza, Florença possui, sim, uma “atmosfera” especial que remete diretamente à história, à arte e à literatura, mas não a uma certa melancolia ligada à decadência física do cenário, já que a paisagem florentina, a despeito de sua idade milenar, não cultua a decrepitude nem faz dela um charme que lhe é próprio. David Leavitt, inicia seu livro citado, afirmando que “Florença sempre foi um dos lugares preferidos pelos suicidas”. Pode até ser, reconheço, já que não estou a par das estatísticas pertinentes. Mas nada na urbe de Maquiavel me leva ou levaria a pensar nela como opção preferencial daqueles que decidem dar fim à própria vida. Pelo contrário. Para mim, a cidade de Dante combina mais com celebrações da vida, não festejos mundanos e frívolos propriamente ditos, é certo, mas ainda assim comemorações da existência que tenha simplesmente permitido a fruição privilegiada daquele lugar único, tão distante do gozo de tantos, infelizmente. Então, como não exultar degustando um vinho toscano na Piazza della Signoria, principalmente em horário menos compartilhado pelas levas de turistas? Em tal circunstância, certamente não haverá lugar para pensamentos lúgubres, como pode ocorrer mais facilmente em Veneza, salvo, claro, se a pessoa já os trouxer dentro de si.
Outra observação aplicável a Florença, a Veneza e a tantos outros lugares: há uma cidade que se entrega logo, sem pudores, ao olhar turístico, aos olhos apressados de qualquer um, e há outra cidade que não se mostra, salvo aos iniciados em seus segredos, aos poucos que ousam e se interessam em ir mais além das velhas fachadas e das imensas portas veneráveis, onde outra paisagem se descortina, como sofisticados tesouros escondidos de olhares rudes. Aqui cabe lembrar que não foi à toa que o doutor Hannibal Lecter, protagonista do livro e do filme célebres, escolheu Florença para morar. Ele, intelectual refinado, foi, na ficção, um dos estrangeiros que penetrou nos muros proibidos da cidadela florentina reservada aos eleitos.
Diz-se que Florença possui quase um quinto da melhor arte do mundo. É muita coisa para uma cidade relativamente pequena. Daí muitos visitantes serem vítimas da chamada “síndrome de Stendhal”, ou seja, palpitações e desmaios que acometem certas pessoas depois de terem visto arte em excesso. O nome da síndrome vem da psiquiatra Graziella Magherini que, por sua vez, tirou-o do diário do próprio Stendhal, que quase desfaleceu após uma visita à igreja de Santa Croce, em 1817, entorpecido por tamanho êxtase estético-cultural. Mas vamos rapidamente aos livros mencionados no início.
No romance “Uma janela para o amor”, adaptado para o cinema, E. M. Forster narra a primeira visita que a provinciana e jovem inglesa Lucy Honeychurch faz a Florença, acompanhada por uma prima solteirona e absolutamente rígida em matéria de costumes. Essa despretensiosa visita mudará a vida monótona da heroína, abrindo-lhe outras perspectivas para além do tacanho mundinho burguês em que vivia. Lá ela conhece o também jovem George Emerson, com quem virá a se casar, contra as expectativas da mãe, e também presenciará um assassinato em plena Piazza della Signoria, inusitado acontecimento que, ao lado de outros menos chocantes, funcionará como uma espécie de rito de iniciação na vida adulta para a inexperiente Lucy. Claro que a complexidade do romance e dos seus personagens é maior do que esta descrição sucinta da trama faz prever. E é importante ter em mente que no século XIX e em começos do século XX Florença — e de modo geral a Itália como um todo — era muito mais “liberal” que a puritana Inglaterra, em termos comportamentais, sendo esta uma das razões de sua atração sobre homossexuais de ambos os gêneros, que lá encontravam ambiente tolerante e até mesmo propício às suas emoções sensuais.
Em “Uma paixão em Florença”, também levado às telas dos cinemas, temos também uma improvável história de amor, desta vez criada por Somerset Maugham, autor muito lido na primeira metade do século passado. Mary Opanton, a protagonista, é mais uma inglesa que passa uma temporada em Florença, numa bela “villa” nas redondezas da cidade. Ela compromete-se a casar com um velho amigo, diplomata inglês em ascensão e de muito mais idade que ela. Tudo caminha tranquilamente nessa direção, até que ela se envolve, irresponsavelmente, diga-se, com um modesto e jovem músico de restaurante, o qual, frustrado em sua fantasia romântica com a distinta e bela mulher, mata-se de repente em pleno quarto da dama. Desesperada para esconder o fato, que a mancharia perante o noivo e a sociedade, ela busca a ajuda de outro inglês, Rowley Flint, homem de vida boêmia e aventureira, que terminará conquistando-a, à revelia da mesma. A voluntária renúncia, por parte de Mary, a um compromisso socialmente vantajoso e próspero, em favor de uma relação sem nenhuma garantia e nenhum prestígio mostra a vitória do amor — ou da paixão - sobre as conveniências e preconceitos da sociedade.
Como dito antes, “Horas italianas”, de Henry James, e “Florença — Um caso delicado”, de David Leavitt, são ensaios. O primeiro é de 1909, trazendo a visão de um escritor do século XIX; o segundo é mais atual, de 2002, com o olhar de um escritor que atualmente tem sessenta anos. Ambos merecem ser lidos, o primeiro como uma viagem no tempo; o segundo como um sofisticado guia da cidade-museu.
Sim, a velha cidade do Arno e da Ponte Vecchio é um tesouro da humanidade. Mas não se compara a Veneza, pois nada pode competir, no meu sentir, com aquela que se ergue sobre as águas do Adriático, como um improvável milagre concedido aos homens. E também é fato que deveria, a notabilíssima urbe dos Médicis e berço do Renascimento, pelo menos uma vez na vida, ser visitada por todos — ou, pelo menos, pelos eleitos capazes de se emocionar com o belo, tal qual o embevecido Stendhal em Santa Croce.