Octacílio de Queiroz cultivava e sabia muitas vezes mais do que pôde ou conseguiu escrever. Tive a fortuna do seu convívio de homem exemplar e intelectual ativista, influente e participativo a partir de sua passagem pela direção de A União, no governo de Pedro Gondim. Gritava ordenando ou simplesmente conversando, até mesmo lendo e escrevendo. Não se empolgava calado. Deu um urro sozinho no gabinete, corri a ver o que era e era ele lendo Gilberto Amado a descrever a passagem de Carlos Dias Fernandes, de tamanco, chapéu de abas largas, uma sacola de compras na mão, atravessando airoso a calçada do Café Lafaiete no Recife. Não sabia segurar as emoções. Nem transigir nos seus códigos ou princípios. Fiquei lhe devendo até hoje, passados sessenta anos.
A busca de explicação do fato histórico nunca desnudo em sua inteireza pela conveniência e interesses dominadores era uma das suas sarnas. Sabia o Brasil desde as versões coloniais, estrangeiras e nacionais, até o tempo em que viveu, convicto de que tudo que sabia podia ser modificado. “A História nunca chega ao fim, nunca se completa, seu Gonzaga”, disse-me a propósito de 1930, mesmo achando que só em 30 a Paraíba veio impor-se à história do país. Resistira à colonização, entrara nas guerras de libertação do Oitocentos, levara o pescoço à forca uma penca de vezes, mas tudo creditado na conta de Pernambuco. Até na santa poesia de Manuel Bandeira.
Citado várias vezes por Flávio Ramalho de Brito em “Um político da República Velha”, riquíssimo livro há pouco editado, o superlativo por conta, sobretudo, da profusa e bem ordenada pesquisa histórica de onde emerge como grande prócer do seu tempo o tio-avô José Gaudêncio de Queiroz, dando lugar a que me reencontrasse com a sentença do grande Octacílio. Precisava, realmente, que mesmo noventa anos depois, a história de um dos donos do seu tempo, fidalgo dos salões republicanos ou das estradas e alpendres caririenses, precisava que o vulto desse cavalheiro viesse a lume. E em página própria a ele dedicada, focado em sua inteireza, e não a retalho ou pegando carona, sempre em contraposição face a outros heróis.
Ouvi falar do tronco dos Gaudêncios sempre pela boca ou escritos dos outros. Amigo dos seus sobrinhos, sobretudo de Amir, filho de Álvaro, nunca fiquei à vontade para os ouvir sobre o papel do tio no filme de 30. Não li pouco a respeito, sobretudo os liberais, vincados como eu ao culto a João Pessoa. Como a grande maioria, fixei minha leitura e minhas ouças nos atores principais vindo ao cume, em seu momento final do trágico duelo. O fogo das paixões sempre crepitando. Fui de coração aberto ao lançamento de uma biografia de João Dantas, um belo trabalho de Marcus Aranha, e subiu lá de dentro na voz de um amigo: “O que você veio fazer aqui, Neguin?” Setenta anos depois as cinzas ainda ardiam. Ora, ora!
Mas também assisti a momentos de grandeza. Vi o velho Álvaro Gaudêncio, irmão de José, ocupar a tribuna da Assembleia ao chegar ao plenário a notícia da morte do seu grande adversário e inimigo Terto Brito, o velho Tertuliano da Costa Brito. Os dois se elevaram nesse transe diante de um plenário comovido aos olhos da galeria. Vi isto. E mais não digo agora por falta de linha. O livro exige, pela rica profusão da pesquisa, pelo modo como o personagem se dissolve em meio ao contexto político que o construiu, na primeira República, agora repassado, habilmente, como uma colcha de retalhos da mais substanciosa bibliografia. Repassei e repassei-me. Saio hoje para a segunda vacina confiando em voltar ao assunto.