Há cem anos, o paraibano Epitácio Pessoa, que presidiu o Brasil no período 1919-1922, decidiu dar ao seu estado natal, sempre pobre e carente de grandes investimentos públicos federais, uma obra capaz de alavancar seu desenvolvimento econômico, libertando-o, pelo menos em parte, do eterno problema das secas periódicas, que inviabilizavam a sustentabilidade de nossa atrasada economia fortemente baseada em rústicas agricultura e pecuária.
Essa obra, imensa para os padrões da época e até mesmo para os padrões atuais, consistia na construção de um novo porto que “de Cabedelo viria pelo rio Sanhauá até dentro da capital, onde seria erguido um cais de atracação diante do novo canal”. Esse cais, imagino, seria onde está até hoje a área do Porto do Capim, o que permitiria o embarque e desembarque dos navios a partir dali, sem necessidade de deslocamentos à vizinha cidade de Cabedelo. Verdade que Epitácio já vinha ajudando o Nordeste e a Paraíba de outras formas, como, por exemplo, impulsionando a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, órgão construtor e financiador de açudes, mas não há dúvida de que seu grande legado à terra onde nasceu seria mesmo o porto moderno e modernizador, que certamente estimularia a circulação de mercadorias e riquezas, atrairia investimentos e geraria empregos, enfim, permitiria que a Paraíba adquirisse maior autonomia frente a Pernambuco, potência que ciumentamente centralizava no próspero Recife a economia de toda a região.
Do Rio de Janeiro, capital da República, Epitácio liberava vultosos recursos para a construção do porto. Confiava que a obra consagradora ia de vento em popa e que talvez lhe fosse permitido inaugurá-la até o fim de seu governo, em, 1922, dentro das comemorações do centenário da independência do Brasil. Poderia sentir-se então quites com a sua terra, a qual, reconhecida, haveria de garantir, ainda por muitos anos, o domínio político do grupo que comandava. Conta-se que até uma foto do porto francês de Marselha ter-lhe-iam enviado daqui, como se fosse uma fotografia do porto paraibano, como se possível fosse enganar de forma tão grosseira um presidente da República, que, em algum momento, faria questão de vir ver pessoalmente, com os próprios olhos, a obra que lhe era tão cara. Mas o certo é que uma grande decepção estava reservada para o paraibano de Umbuzeiro, uma decepção tamanha que, segundo dizem, tê-lo-ia feito afirmar, no momento da suprema indignação com a traição descoberta, que jamais retornaria à Paraíba. Na verdade, não havia obra nenhuma, porto nenhum, e os recursos enviados para esse fim tinham-se simplesmente evaporado como fumaça ao vento, num mistério escabroso, creio que até hoje não esclarecido.
Imagino o quanto deve ter sofrido Epitácio com essa fraude gigantesca, perpetrada, sem dúvida, com a participação direta ou indireta de seus próprios conterrâneos e correligionários, gente de sua confiança pessoal e política. E ele cumpriu a promessa feita a si mesmo: só depois de morto voltou ao torrão natal, talvez, não duvido, contra sua própria vontade.
Leio agora em A União a notícia de que o atual governador paraibano reuniu-se com nossa bancada de parlamentares federais para assegurar recursos no Orçamento Geral da União para, entre outras coisas, a dragagem do Porto de Cabedelo, até hoje modesto em suas operações, carente de obras que lhe permitam ampliar suas atividades, as quais, é de se supor, devem continuar tão limitadas quanto no tempo de Epitácio presidente, cem anos atrás. Veja só. É de se imaginar o que seria hoje esse porto se a obra planejada e financiada pelo conterrâneo ilustre tivesse efetivamente sido concluída. Provavelmente o atual governante não estaria pedindo verbas para ele, destinando a outras necessidades estaduais esses recursos arduamente pleiteados. E a própria Paraíba certamente seria outra, mais desenvolvida.
Cem anos desperdiçados. Cem anos de atraso voluntariamente escolhido por paraibanos que enganaram Epitácio e sua boa-fé, gente acostumada a alimentar seus privilégios feudais com a miséria do povo desvalido.
Mas o presidente posteriormente, em 1928, deu o troco aos que lhe haviam traído, um troco que jamais esqueceriam, um troco à altura da desfeita perpetrada: mandou-lhes como presidente estadual seu sobrinho João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, um homem íntegro e corajoso que, com atitudes renovadoras e progressistas, iria atingir no coração o antiquado sistema governativo, na época ainda formado por muitos remanescentes dos idos do período 1919—1922, ou seja, por muitos dos que atuaram, de forma direta ou indireta, na trapaça inesquecível.
Como chefe político incontestado, Epitácio poderia perfeitamente ter indicado algum correligionário da aldeia para suceder João Suassuna. E tudo provavelmente teria continuado como dantes no quartel de Abrantes, com a Paraíba refém de uma ordem que visava apenas a manutenção e a reprodução de uma elite retrógrada, a quem não interessava portos, estradas, equilíbrio nas contas públicas, moralidade administrativa e outras iniciativas e virtudes indispensáveis ao desenvolvimento e à justiça. Mas ele escolheu João Pessoa, praticamente um forasteiro imune aos conchavos locais. Terá sido essa sua desforra? É uma hipótese plausível, que aqui fica levantada, se outros já não o tiverem feito anteriormente.
Sem entrar no mérito das rivalidades pessoais granjeadas pelo temperamento impetuoso de João Pessoa, certamente responsáveis, pelo menos em parte, por seu sacrifício no Recife, em julho de 1930, não se pode negar que com ele e os governos revolucionários seguintes, o estado viu introduzida uma nova ordenação político-administrativa, de caráter modernizante, na linha pregada por Getúlio Vargas e todos que lutaram pela extinção das oligarquias dos coronéis e da “política do café-com-leite”. Era a Paraíba e o Brasil entrando no século XX, com trinta anos de atraso. E era também a derrocada da arcaica estrutura de poder que engabelara Epitácio na escandalosa questão do nosso porto.
De qualquer modo, seja com o irrealizado projeto portuário, seja com a indicação de João Pessoa, Epitácio deu provas de que serviu à sua gente. E se ainda hoje, passados cem anos, não temos um porto à altura de nossas necessidades, certamente a culpa não lhe pertence.