A amargura de que fala o título é a “de não ser bonito, quando jovem”. E quem a cita é Paulo Francis, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 19/5/1991. No texto, ele está se referindo ao escritor Milan Kundera, célebre autor de A insustentável leveza do ser, romance que marcou época em fins do século passado. Escreve Francis: “Como é feio Milan Kundera. Parece um macaco. Imagino Kundera, garoto, num baile de formatura, tentando tirar uma menina para dançar e sendo recusado, delicadamente, se ela era educada, e com riso zombeteiro, se não.
A amargura de não ser bonito, quando jovem. Continua tudo a mesma coisa em 1991”. Quando escreveu isto, o jornalista certamente devia estar pensando também em si próprio e em suas agruras de adolescente carioca não bafejado pela beleza física. E em tantos meninos e meninas pelo mundo afora, em todos os tempos, igualmente desprovidos daquele atributo estético que faz tanta diferença.
E continua Paulo Francis no mesmo artigo: “Li outro dia no Observer a memória de uma filha de cara importante, esqueço qual, contando que em Bedales, a escola dos adolescentes politicamente corretos, nas festas era sempre a mesma coisa. Os dez garotos mais bonitos e as dez meninas mais bonitas dançavam, e o resto ficava no desespero da rejeição, as meninas ainda mais sem graça do que os meninos, se sentindo jarras, já que eles sempre podem enturmar, beber, fazer barulho, o que é menos natural à mulher”. Ah, digo eu e minha experiência, como isto é verdade, uma dura verdade universal e atemporal, a afligir garotos e garotas “normais”, ou feiosos mesmo, numa fase da vida em que a sensibilidade está à flor da pele, como nervo exposto a todas as desfeitas. Fico pensando em quanta personalidade juvenil não se tornou tímida, retraída, insegura - e até amarga - por conta daqueles insucessos em bailes de formatura e em todos os bailes, quando a rejeição de uma simples dança feria tanto – e tão fundo - a alma virgem de tantos.
E prossegue Francis: “Mas Kundera deve ter moitado. Se percebido sozinho mesmo. E com um destino alternativo, ainda impreciso, mas diferente do vulgo”. Outra verdade. Essa solidão sentida tão precocemente, e tão dolorosamente, por jovens, quase meninos e meninas ainda, totalmente despreparados para a adversidade de um desprezo demolidor do amor-próprio ainda em formação - e já tão duramente atingido. O estrago necessariamente há que ser grande. Quem viveu, sabe. Em muitos casos, será preciso muito divã psicanalítico para se superar aqueles implacáveis “nãos” adolescentes.
Como bem disse o jornalista, a rejeição pela feiura implicava não apenas na percepção da solidão pessoal. O(a) rejeitado(a) também pressentia que seu destino não seria – não poderia ser – semelhante ao dos belos e das belas tão felizes. Seria um destino “diferente do vulgo”, um destino que não se apoiaria, pois não poderia, na beleza física, um destino que teria que ser erguido sobre outros alicerces. E foi o que tratou de fazer o feio e desdenhado Kundera, cultivando seu talento e se tornando um nome da literatura mundial, após o que, provavelmente, deve ter se tornado atraente para muitas beldades, talvez até para aquelas mesmas que lhe esnobaram em antigos bailes juvenis, elas agora já não tão belas, porque a beleza física, por justiça dos deuses, e ao contrário do que ocorre com certos vinhos e com os dons, não costuma melhorar com o tempo.
Lembro-me dos meus bailes adolescentes. E me sinto, em alguma medida, na pele de Francis e de Kundera. E de tantos outros companheiros de infortúnio. Milhões e milhões de enjeitados. A observar, a estudar atentamente as garotas nas quais poderia ou não investir o apelo desesperado por tão pouco: uma simples dança, sem maior ou nenhuma consequência. Porque a nossa desditosa confraria era orgulhosa, tinha o brio de não se oferecer gratuitamente ao corte impiedoso. Por isso, escolhia bem a quem abordar, renunciando previamente às formosuras inacessíveis, como quem diz, humildemente: conheço meu lugar. E então, quando era o caso, fruíamos a modesta felicidade ao nosso alcance, já desconfiando que essa seria a lei e a sabedoria da vida dali por diante.
O fato é que tocou-me imediatamente, como não poderia deixar de ser, a frase de Francis sobre “a amargura de não ser bonito, quando jovem”, essa amargura que conheci e que é de tantos e tantas, a maioria. Provei-a e posso afirmar que é amarga, realmente, puro fel, vinagre puro. Se pudesse, certamente teria afastado esse cálice de mim na época própria, como teria feito qualquer jovem. Só não sei – e não poderei saber nunca – é se teria sido, no balanço da vida, mais feliz e realizado, caso tivesse dançado mais naquelas antigas tardes de domingo, que, para mim, não passam jamais.
No colégio, a situação se repetia. Em cada sala, havia sempre os bonitões e as beldades que dominavam o pedaço. O resto da classe ficava, em moderada resignação, comendo as migalhas que caíam do banquete dos eleitos. O consolo é que os belos e as belas nunca tiravam as melhores notas. Porque ninguém pode ter tudo ao mesmo tempo, não é mesmo? Justiça dos céus.
É provável que o preço pago por Kundera por sua literatura tenha sido sua feiura e suas angústias. Seus fãs – e talvez ele também - podem achar que valeu a pena, claro. Mas só ele sabe – e mais ninguém - o que sofreu.