Tolhido pela surpresa, Coriolano Torquato Lins não tem rapidez suficiente para, na sequência, esgrimir-se da pergunta O amigo é de ond...

O Retoque (Parte 3)

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Tolhido pela surpresa, Coriolano Torquato Lins não tem rapidez suficiente para, na sequência, esgrimir-se da pergunta O amigo é de onde? E após ouvir um sussurrado Recife como resposta, o moço põe o dedo indicador numa têmpora e vagueia os olhos, teatrinho típico de quem organiza dados na mente, para finalizar seu gesto numa assertiva de cabeça. Pede então licença pra sair. Volto já, diz, e vai buscar alguma coisa lá fora (deixada provavelmente na mala do carro). Ao voltar, tem um livro nas mãos. Olha aqui, ele diz, e coloca-o na mesa, já aberto na página. Torquato Lins moveu-se ruidosamente na cadeira e iniciou a leitura.

Ficção. Conto. Descrevia a multidão de lupanares da Rua da Aurora.

Ali, dessa forma, recebe a primeira noticia da vida sobre Edilson Limeira. Dá então umas folheadas no livro e anota mentalmente o nome. De volta ao Recife, começa contatando as gráficas. Indaga aqui acolá sobre ele, e alguém acaba lhe fornecendo como pista nada mais nada menos que a livraria da Avenida 7 (a sua!) ... onde vai encontra-lo, afinal, catando alguma coisa — discreto, silencioso, invisível quase —, e praticamente o força a uma conversa.

Algum tempo depois deste encontro, Torquato Lins será visto jactando-se do próprio faro de editor. O local, nem podia ser outro. Bar de Apolônio. Para tanto, se faz acompanhar do próprio Limeira — numa das raras vezes em que o contista põe seus pés ali.

Sentado em uma mesa repleta de admiradores, o editor exibe o homenzinho sisudo como mais uma de suas escolhas inspiradas, e que se dera, segundo ele, a partir de um raro momento de intuição, em um ambiente de leitura... Esquece, convenientemente, de fazer qualquer menção àquele jovem idealista de Parati. Como sempre, bastante à vontade no ambiente da casa, e depois de bem reafirmar-se como uma das referências do mercado, passa a comentar os atuais processos de edição, para os quais (segundo diz), e infelizmente, qualidade importa cada vez menos, assim como a origem daquilo que se bota para rodar numa máquina de impressão, tratando, no entanto, de abrir uma exceção aos que lidam com autores consagrados.

Se me chega às mãos um... pretenso livro de Literatura – Continuou – E se eu, por alguma razão, renuncio a opinar sobre esse material inédito, então é evidente que eu não preciso ser seu editor.

Mais na frente, o que começara como um simples exercício confessional, derivação natural e mesmo terapêutica de alguns goles iniciais, vê-se transformado pela copiosa ingestão de cerveja que se segue, num surpreendente surto de sincericídio, quando Cori, em seu jorro habitual de palavras, vira a metralhadora contra si e seus colegas da praça.

Com o tipo de edição que hoje se pratica, a tendência cada vez maior é essa que já se vê por todo canto: de nossa contribuição se resumir em fornecer orçamentos. Do jeito que as coisas andam – Diz – Acho que o escritor já pode ir diretamente a uma gráfica, entregar seu original devidamente revisado e ... ponto final. Pensou um pouco e sentenciou De duas, uma: ou eu monto meu próprio parque gráfico, ou continuo a ser o que sou: um editor no velho sentido do que a palavra quer dizer. 

Olha – Referindo-se ainda aos colegas editores, deu uma suavizada – A questão é que fica até difícil culpá-los na atual conjuntura de mercado. Caiu muito o preço das publicações, e a rentabilidade do negócio passou a depender do número de projetos que se tem em andamento para se poder manter um escritório e pagar um ou dois empregados – Lamentou-se. E mais na frente fechou o firo A entrada da China nesse cenário de facilitações, só veio piorar as coisas.

Imagina só... hoje compra-se até o famoso papel Fabria- no... compra-se facilmente, e de onde vem?... da China! Chega com marca alemã, italiana... e o preço... olha, o preço equivale ao dos papéis bem mais simples, que pagávamos antes, vê se pode... – Olhou em volta e deu uma última esticada no assunto – Falar nisso, a coisa chegou a um ponto em que, hoje, por pura comodidade, e acreditem vocês, ou não, eu mando vir da China o meu ‘Savon de Marseille’... – E abriu-se numa risada.

Referia-se ao popular sabonete francês, sem esquecer, pedante, de abrir a última sílaba num simulacro final e impudicamente caricato daquele autêntico sotaque parisiense.

Mas, desde aquela primeira investida na Rua 7, não se sabe – jamais se saberá – até que ponto sua firme decisão de tutelar as publicações desse aparentemente simplório Edilson Limeira, teve por motivação remota alguma ideia gestada no antigo bangalô da Rua das Pernambucanas, do qual sempre fez questão de relembrar o pequeno gabinete ovalado na parte de cima, onde o pai cultivara uma biblioteca. Foi lá que entrou em contato com os clássicos editados na época, e foi ali onde, pela primeira vez leu sobre a insuperável parceria entre Jules Verne e seu – ele também – célebre editor Pierre-Jules Hetzel.

No correr do século XIX, a parceria entre estes dois ganhara fama de um sucesso sem precedentes na História da Literatura, embora tal ponto de vista tivesse de, forçosamente, complementar-se no outro que enxergara ali a maior intervenção editorial em obra de escritor de que o mundo tivera até então notícia. De qualquer forma, este modelo de coparticipação, levado ao extremo pela dupla de franceses, acabou fazendo a cabeça de gerações e gerações de editores países afora. Talvez, ao vetar um determinado escrito de Limeira, Coriolano estivesse – consciente ou não – ‘macaqueando’ a determinação de seu ilustre predecessor. Talvez estivesse, como aquele, justificando sua intromissão na obra alheia em nome da boa linha editorial. Mas fica difícil imaginar um Torquato Lins credor de constantes e bem-intencionadas intervenções que lhes fossem trazer – nessa Recife conturbada por um trânsito de automóveis que é um pesadelo, e cuja banalidade cotidiana se agrava com uma população viciada em novelas de televisão –, fama e dinheiro, como trouxeram um dia a Verne e Hetzel, naquela alegre Paris troteada por charriots & charrettes, e sacudida, aqui e ali, por algum escândalo de folhetim. Será?

Seja como for, será sempre um erro desprezar a força do íncubo em weltanschauungen formada nessa já um dia considerada, sem favor nenhum, a capitania portuguesa mais próspera do Novo Mundo. Por mais que pareça um descalabro ombrear a Paris das luzes com esta denominada “Veneza brasileira”, será preciso suspeitar do estrago (ou da benesse) que uma frase do tipo “Pernambuco Falando Para o Mundo”, célebre vinheta da Radio Jornal do Recife, possa ter causado na mente das várias gerações que se sucederam, e que ficam portanto desculpadas por alguma manifestação qualquer de leve soberba – no empinar, eventualmente, algum tardo ar de grandeza passada.

Quanto àqueles originais acabados de receber, no entanto, iriam agora receber o sexto selo CTL-Editor para livro de Edilson Limeira.

Que pensa fazer dele, Perguntou Cori, apontando com o queixo para as duas folhas de papel que jaziam descartadas à sua frente, e sem esperar resposta, disparou um dos seus lugares-comuns prediletos – Lembre-se que o segredo de Trevisan (Dalton) foi jamais se pôr em desacordo com seu público – Disse – Nunca se fazer de rogado com aquilo que o leitor sempre busca encontrar na obra dele: taradinhos de pijama e pantufas em cadeiras de palhinha, polacas de calça-cinta e chibatinha.

O que ele não disse, mas diria (na verdade, foi mais ou menos isto que disse, dias depois, numa rodada de uísque com amigos, na varanda gourmet do deputado, da altura em que se olha hipnotizado para a fita sinuosa, silenciosa e aparentemente inalterável, feita de carros que cortam o Parque dos Manguezais), é que Edilson Limeira bem podia ser escritor de talento, o que somente o tempo havia de provar – ou não –, arrematou, mas enquanto vida tivesse – cravou –, condenado estava Edilson a mexer e remexer no latão de lixo diariamente abastecido pela memória de uma enorme fatia de brasileiros médios, eternamente perdidos em si, no tempo, e transformados – também eles – em meros figurantes da História pátria.

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Entre um e outro gole de uísque incendiário, observou que Edilson bem que aprendera a usar celulares de última geração (ao contrário de si, frequentemente levado ao desespero pelas maquininhas diabólicas – lamentou-se, enquanto olhava resignado a própria bolacha fina que tinha em mãos), e que ele, Edilson, encontrava-se, atualmente, modernizado ao ponto de escrever seus textos em um computador Mackintosh, embora o que buscasse reviver em sua obra não fosse além do clima Trash (e que tão propício lhe fora) dos Opalões e Corcéis dos já distantes tempos da ditadura militar.

Tempos bons aqueles, em que, disse ele, conseguira Edilson disfarçar a timidez travestido de mais um garanhão de costeletas e calça boca-sino... e, a partir daí, ficou difícil segurá-lo.

Boquiabertos, os presentes o veem tirar do armário uma bolorenta súmula de verbetes bregas, caídos há tempos em desuso. Surpresos, ao vê-lo investir contra alguns pretensos conceitos nacionais de música popular, e bote motel de luz negra, tome amor/desamor alienante do ‘Rei’ Roberto Carlos, chorosas do tipo Odair José, piegas mesmo, do tipo Fernando Mendes, etc.. porque, infelizmente – acabou concluindo ele –, é o sentimento historicamente decorrente disto, a geleia insossa do nada, que aquele bocado de ‘coroas’ que vai a cada lançamento que Edilson faz, espera encontrar nas páginas de seus livros.

Uma das convivas pergunta então (um tanto candidamente) se, alguma vez, tentara Edilson produzir texto diferente, e Torquato Lins aproveita para se recompor um pouco, pensando agora na resposta com olhos para o alto, cabeça semovente, assim de quem sopese pensamentos. Mas, Começa:

Olha... outro dia me trouxe um conto até...eu diria... bem diferente. Li, e – confesso –, gostei, mas... tive de cortá-lo. Não dá para nesta altura do campeonato o meu amigo Limeira aparecer com um conto...vamos dizer...de beleza poética...denso, sem aquelas firulas de enredo que tanto preza, e o que é pior: Sem sexo!

Imagine só, que, nesse texto, vai descrever suas primeiras impressões de infância, falar de chafarizes e parques públicos sumindo da visão debaixo de verdadeiros dilúvios assoprados do oceano... traz ruas ensombradas por mangueiras, num sossego de província só cortado, aqui acolá por solitário Aero Willys, ou Simca, cuja passagem apenas interrompe por instantes o jogo de bola na rua... mas, com minha recusa em aceitar este conto, ele simplesmente catou as duas folhas de papel em cima do meu bureau, dobrou-as e as socou na pequena bolsa tiracolo que sempre carrega debaixo das axilas... saiu dizendo que ia dar uma retocada...

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