Eu estava deixando a pequena Santa Luzia, onde nasci e me criei, onde podia desmaiar na praça sem medo (pois alguém iria me deixar em casa), a cidade que eu podia levar no bolso, para ir morar em Campina Grande, uma cidade grande, onde qualquer desconhecido poderia me botar no bolso a adolescidade.
Concluído o Ginásio, não havia mais o que estudar em Santa Luzia, e minha mãe acertara com tia Nevinha: eu iria residir em sua casa, para estudar o curso Clássico, pois eu pretendia cursar Direito.
Nas conversas da nossa família, essa minha tia era sempre lembrada como modelo de pessoa silente, contida, austera, severa, racional, exigente, inflexível, e eu estava largando a palavra farta, o sorriso fácil, a face meiga, a lassa emoção, os beijos e abraços pródigos da minha mãe, para ir morar com essa tia.
Ao receber-me, tia Nevinha vestiu o figurino que a família lhe desenhara: o rosto impassível, sequer um sorriso; nem mesmo um aperto de mão. Dona Zefinha, a senhora que fazia os serviços da casa, até quis me cumprimentar e chegou a esboçar um sorriso, mas o olhar de minha tia apagou o esboço.
Minha vida mudou radicalmente. No meu pequeno beco, aconchego materno, banhos de açude, barra-bandeira, com meninos e meninas, futebol de rua, jogos de time de botão, partidas de xadrez à noite, na praça, com o velho Manu (mestre de todos), cinema, quando quisesse... Na campina desconhecida, os cumprimentos formais de rotina, à distância, horários rígidos de deitar e de mesa frugal e silente, não poder trazer colegas pra casa (a única exceção era Ariosvaldo, filho de uma conhecida de minha tia, colega muito estudioso, que vinha estudar e jogar xadrez comigo). Minha tia fiscalizava meus momentos de estudo em casa, pois eu tinha vindo pra cá pra estudar; não pra brincar. Meu pai enviava uma pequena mesada, suficiente para a cantina sóbria e para a tarde do domingo, que poderia se abrir em festa para um filme ou para o Campinense, quando havia jogo no domingo — à noite, minha tia não permitia nem filme nem futebol, mesmo quando era no Presidente Vargas, que ficava perto da casa dela. E era filme ou futebol – um dos dois.
Minha tia casara muito jovem, ficara viúva dez anos depois de casada, raramente ia a Santa Luzia, e, portanto, era quase uma desconhecida para mim. Nunca fora de abraçar nem beijar – até um aperto de mão, gesto tão rotineiro entre brasileiros, ela evitava; poder-se-ia dizer dela, sem medo de errar, ser uma vigilante praticante da pudicícia do afeto. Não me recordo de algum sorriso dela, de alguma piada, nem mesmo de algum afago verbal, e eu sentia falta dos abraços e beijos de minha mãe.
Falava pouco, e eram raros e sucintos os nossos diálogos, quase monólogos, em torno de minhas poucas tarefas domésticas, meu desempenho na escola e sobre um ou outro romance que eu estava lendo; ou ela lia, em voz alta, com extrema contenção, algum poema que a agradara. Obrigou-me a ler os sonetos de Camões e a decorá-los, recompensando-me com 2 cruzeiros por cada soneto recitado de cor – e ter conhecido os sonetos de Camões através dela seria o suficiente para nunca esquecê-la.
Tia Nevinha era Bibliotecária do Colégio Estadual da Prata, mas, como era muito austera, fizera uma ficha de leitora, e, embora eu também tivesse ficha de leitor da biblioteca, vez por outra, ela me trazia um livro emprestado da biblioteca Flávio Bezerra de Carvalho, no nome dela, e sempre estava atenta ao dia de devolução do livro. Ela só renovava o empréstimo uma vez, pois a biblioteca era pública, e alguém poderia precisar do livro. Dois livros inesquecíveis ela me trouxe da biblioteca: a Teoria literária, de Hênio Tavares, e A criação literária, de Massaud Moisés. O primeiro me trouxe o básico sobre versificação e muita coisa sobre figuras de linguagem. O segundo me revelou a engenharia do romance. Eu, que sempre lera como passatempo, pelo mero prazer de ler, passei a perceber a literatura como uma construção, algo que tinha um arquiteto por trás, estrutura, andaimes... Como a minha vida desaguaria nas letras, esses livros estariam no barco sempre.
No meu aniversário, sempre com a mesma expressão de distância e impassibilidade, sem um gesto sequer que lhe traísse alguma emoção, deu-me um exemplar de A moreninha, e, mantendo a mesma distância, um exemplar de Quincas Borba, quando fui passar as férias de julho em Santa Luzia. Talvez fosse seu modo de enxugar o afeto.
Até o final dos anos 50, era comum os livros terem as suas folhas emendadas nas extremidades, de modo que o livro ficasse protegido dos leitores de livraria, o que obrigava o interessado a comprar o livro. Para ler um livro, você teria de separar as páginas, e o objeto mais adequado pra realizar esta operação, sem estragar as bordas do livro, era uma espátula.
Tia Nevinha tinha uma espátula, único presente que guardara de seu marido; com oito anos de uso, parecia recém saída da loja, sempre sobre a sua mesinha de cabeceira, junto ao missal — talvez fosse o seu troféu, o único que buscara ou recebera ao longo da vida.
Era bonita a espátula. A prata sempre clara, sem nenhum desenho além das minúsculas iniciais de minha tia gravadas num lado do cabo e um pequenino livro aberto desenhado no outro lado. Não sei se por ser a primeira espátula que vi na minha vida, se pela beleza da peça ou se pela delicadeza que eu via a cada folha que minha tia separava da outra (eu sempre agredira com uma faca todas as folhas dos livros que abri), eu desejava muito abrir um livro com aquela espátula.
Nas vezes em que me cedeu a espátula, dizia que abrisse todas as folhas de uma vez, roubando-me o prazer de manusear aquela espátula lenta, durante dias, enquanto durasse a leitura do livro. Quantas vezes peguei naquela espátula e a acariciei, desejando ter uma igual! Nessas ocasiões, Tia Nevinha sempre perguntava o que eu queria com aquela espátula, se no momento não havia folhas para abrir, e eu sempre dizia que gostava da espátula, achava-a bonita, ainda teria uma igualzinha àquela. Ela, sem dizer palavra, fazia um gesto de cabeça indecifrável.
Por telefone, minha mãe já soubera da situação sufocante de monastério que eu estava vivendo. Em julho, fui passar as férias em Santa Luzia e consegui que minha mãe persuadisse meu pai a aceitar que eu fosse estudar o segundo ano em João Pessoa, morar na casa de tio Aderaldo, onde teria, de partida, dois primos de idades próximas à minha, Joãozinho e Pedrinho, e onde teria muita liberdade, sem dúvida.
Findo o ano letivo, na noite anterior ao meu regresso a Santa Luzia, fui dormir tarde e, pela madrugada, experimentei aquela sensação em que a gente não sabe se está sonhando ou acordado, ouvi algum leve rumor no quarto e tive a impressão de que alguém mexia em minha mala – mas não cheguei a acordar completamente. Na manhã seguinte, tomei o café habitual com minha tia, na hora de costume, e, na hora de sair, despedi-me dela, que manteve a mesma distância afetiva apresentada no dia em que cheguei. Sentia que não mais voltaria àquela casa e confesso que senti uma emoção difusa, não sei se era pena, gratidão por aquele tempo ali vivido, ou até um pouco de saudade, paradoxal, e ainda esbocei um esgar de sorriso para minha tia, em meio a palavras de agradecimento, mas a recepção foi de total impassibilidade. Nenhum gesto traía algum sentimento daquela senhora.
Em Santa Luzia, desembrulhada a saudade nos abraços de minha mãe e na sua saborosa mesa, comecei a desfazer a minha mala, à procura de uma roupa e, mal retirei uma camisa, vi que a espátula estava ali.