Não alcancei Heitor Villa-Lobos; já os irmãos José e João Baptista Siqueira, quando faleceram, ainda era criança vivendo nos arredores ca...

Êh, amigo velho!

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Não alcancei Heitor Villa-Lobos; já os irmãos José e João Baptista Siqueira, quando faleceram, ainda era criança vivendo nos arredores campinenses, sem instrução musical formal. Mas, já adulto, conheci e me aproximei de um baluarte da música, uma pedra fundamental na composição brasileira, e é desta coluna artística que brota, por exemplo, a primeira Sonata para piano cheia de encantos rítmicos,
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simplicidade, marca registrada no uso dos ornamentos, e dos vetores intervalares como a quarta justa. Tão idiomático é o estilo de Edino Krieger que, seguindo coerência composicional, as quartas, e sua inversão em quintas, estruturam-se em temas de pura sonoridade, timbre e nostalgia na segunda Sonata para piano , concebida em abril de 1956, na capital britânica.

Temos a sorte de tê-lo longevo, e, ao longo de suas mais de nove décadas de existência, podemos sorver de sua mente criadora, atuando não só por meio da própria obra, quanto como pelos cargos que exerceu na promoção das artes e dos artistas nacionais. Ele mesmo, dentre muitas homenagens que recebera pela passagem de seu nonagésimo aniversário, relembrou no programa Harmonia da Rede Minas, muito de sua trajetória.

O álbum Edino Krieger entre amigos é produção caseira dedicada com amor à sua esposa Nenem, e aos frutos dessa longa relação de parceria e apoio mútuo. Tem, na apresentação do encarte, palavras de Tim Rescala, notável humorista-compositor que disponibilizou seu estúdio onde se deram parte das gravações:

O músico, como todo artista, sempre tem alguma referência, alguém que admira, seja pelo talento, pela obra ou mesmo pela personalidade. É difícil lembrar de um outro músico por quem a classe musical nutra tanta admiração [...] da mesma forma que criou obras fundamentais para a música brasileira, deu condições para que seus colegas também criassem. Da mesma forma que abriu caminhos, deu condições para que outros abrissem. Há, não só no Brasil mas no mundo, poucas pessoas assim [...] em tempos difíceis, confusos e difusos, como este em que vivemos, este registro de Trio Aquarius e Duo Santoro de algumas obras de Edino é um alento. Resume uma trajetória, mostra um caminho, dá um norte. Que privilégio é ouvir de perto as obras do mestre e ser espectador, de alguma forma, de seu processo criativo. Que privilégio é tomar um vinho com o mestre, jogar conversa fora, na companhia de sua cara-metade, que é pra ele fundamental, assim como, para ela, fundamental ele também é. E para nós também, os privilegiados.

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O próprio Edino refere-se a este álbum como fruto de uma autêntica amizade; os intérpretes são muito próximos da família Krieger, e por vezes, já tocaram, inclusive como estreia, suas obras. O disco vai desde uma Sonata para violino solo (opus 1) feita na adolescência, sob as primeiras orientações de Hans-Joachim Koellreutter, aos seus dezesseis anos; até obras estreadas em Bienais de Música mais recentes, como o ciclo dos Estudos Intervalares. O álbum abre com uma singela peça, Chôro Manhoso, concebido aos vinte e quatro de agosto de 1956, e dedicado a Dinorah Krieger, sua irmã. A versão original é para piano solo e podemos ouvi-la pelas mãos de um intérprete muito conhecido e velho amigo dos Krieger, Miguel Proença .

Na Europa é comum que grandes mestres tenham versões e versões do original de suas peças, transcritas em novas instrumentações; é uma forma de ampliar a percepção, e de que as obras sejam mais conhecidas e compartilhadas por diferentes grupos e intérpretes: quando a música transcende a própria concepção originária. É do pianista mineiro Flávio Augusto, membro do Trio Aquarius, essa e as demais versões em trio (Sonatina e a valsa Nina, também na concepção primeira para piano).

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A Sonatina para piano solo, – que aqui trago na sutil e sensível interpretação do pianista gaúcho Alexandre Dossin – é, no amistoso álbum, incrementada com notas pedais de um tênue vibrato ao violoncelo, no primeiro tema que é suportado com compartilhamento da melodia entre o violino, ora só, ora dobrado pelo violoncelo no segundo tema do primeiro movimento. Noutros momentos, o grave do piano é dobrado com o violoncelo, dando um reforço timbrístico, num som composto. Já no segundo movimento, o sério e desafiador Allegro, a dosagem é bem equilibrada entre os três instrumentos, revelando uma transcrição bem elaborada tecnicamente: Flávio Augusto foi feliz ao traduzir para trio essa peça. Aliás, o Trio Aquarius é maduro em concepção camerística, extremamente entrosado e convence nessa versão que bem poderia ter sido concebida pelo próprio Edino. É inspirador ver quando intérpretes se dedicam nesse nível à obra de algum artista criador de nosso solo pátrio; e Edino merece!

Na valsa Nina, estruturada numa harmonia saudosa, rememorando o espírito seresteiro, cancioneiro, o Trio AquariUs brinda-nos com a leveza que a obra merece: audição despretensiosa e leve, deixando-se levar por onde a memória e o espírito nos conduzirem. Mas, é na obra Trio Tocata que a interação criativa entre os instrumentos, revela uma originalidade da concepção e uma maturidade de uma criação robusta.
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A peça já começa com um uníssono longo e arrebatador que desemboca numa dissonância provocante: um autêntico Edino. Essa sonoridade sinuosa, com quartas aumentadas, mais ásperas, e articuladas por ritmo insistente, marcante, é característica de muitas de suas obras mais elaboradas. Dessa abertura mais séria e árida, surge um arrasta-pé modal, um baião cheio de molejo no qual violoncelo e violino vão se desafiando, sem perder os ataques reiterados de uma agressividade latente, como é agressiva a seca nordestina. A rítmica mais rude retorna, com a repetição de baixos ao piano, ou acordes insistentes no agudo, e dessa harmonia, brota desmembramentos em conversações timbrísticas. Um implícito rememorar de contornos melódicos villa-lobianos, e uma vez mais a emulação do baião: como se fora um baião telúrico, de uma terra rachada, num fundo de cacimba, e, em cada rachadura, uma lembrança espirituosa. A obra termina como começa, não sem antes um ponto final, também ao estilo de Villa-Lobos: uma tônica exclamativa.

O ciclo de seus Estudos Intervalares já em si merece um ensaio analítico exclusivo. Destaco a mimetização do mecânico, do maquinal presente nos estudos Das segundas e Das terças, com ritmo frenético em cachos de notas que mais parecem sintetizadas: idéias que se contrapõem e se ratificam a partir de trinados ou arpejos vagos e ressonantes. Já harmonizações comuns no jazz se ouvem no estudo Das quartas, sem que se perca um coerente motorizado canto indígena, relembrando novamente Villa-Lobos. Ou o pulsar de uma citação em ritmo de maracatu no Das quintas. E também o baião sem baixo fixo, no Das sextas, repleto de referências. De cantadores, como numa moda ou toada de viola do Centro-oeste, ou do ritmo bem nordestino com contorno modal, à valsa opus 64 nº. 2 de Chopin, em dó sustenido menor, numa intertextualidade bem humorada, misturada a partir desse que foi o intervalo eleito no século XIX como o mais romântico no repertório, sobretudo pianístico.

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O Nordeste de sua amada Nenem também se faz presente no Das sétimas, e o baião, dessa vez, bem autêntico quanto à marcação, é pulsado numa melodia simples e gingada, e com o incremento das sétimas arpejadas. Edino é mais Edino no Das oitavas, quando elabora um ritmo de mãos alternadas que progride cromaticamente e se encerra vibrante e viril: traço presente em diversas de suas obras. O Das nonas resume os anteriores no que de simbólico ou arquetípico o ciclo contém.

Instrumento primeiro de seu Edino é o violino. Não por outro motivo decidiu escrever uma Sonata solo em seu opus inaugural. É peça dedicada ao seu pai, músico que o conduziu nos primeiros passos da vida e da lida musical. A simplicidade de seu Edino o impede de reconhecer o valor para além da aprendizagem das formas barrocas. A interpretação é do mineiro Ricardo Amado que satisfaz o compositor, tendo sido o próprio violinista a sugerir a inclusão dessa obra histórica sobre a qual se pode traçar toda a trajetória criativa de seu Edino, até a mais recente, de que tive o privilégio de colaborar, honrosamente, na edição.

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A última obra do álbum é feita para os gêmeos Santoro. É uma emulação entre os violoncelistas, alçando uma independência de peça com forma e caráter próprios, numa das partes que constitui o destaque máximo dos solistas de um concerto. Cadência, num sentido de encaminhamento, de concatenação de idéias, também explora a tessitura do instrumento e desafia o instrumentista a explorar os recursos expressivos que o particularizam. Aliás, falando em particularidades, Edino, quando ouvido em diversas obras, salta-nos aos ouvidos, em estilo e jeito pessoais de tratar os sons, sua música é sinal indelével.


Por isso, diante de sua produção rica e diversa, mas de uma coesão admirável, além desse álbum, permito-me ainda falar de uma obra cuja vivacidade composicional é de um orgulho nacional como poucos feitos na atualidade: o Concerto Duplo para violões e cordas com arco [Edino Krieger: Concerto for two guitars & string orchestra]. Edino se congraça numa tradição perpetrada por grandes nomes nacionais como Camargo Guarnieri, Francisco Mignone, os irmãos Siqueira; além de Osvaldo Lacerda, Marlos Nobre e o próprio Villa-Lobos e Guerra-Peixe. Ou ainda estrangeiros radicados no Brasil, como Ernst Widmer que foram felizes no uso sistemático dos contornos modais eclesiásticos, já com seus jargões nossos, dessas referências da rica região nordestina, muitas vezes, tutelada pelo sudeste. É como se Edino vestisse a couraça de vaqueiro e o chapéu que o caracterize como um sertanejo-catarinense, numa caatinga imaginária em seu coração e mente criadora. Mesmo assim, Edino se mantém simples, como um velho amigo do Brasil, em suas idéias (perdoem-me o saudosismo no acento...) que são tão ricas a ponto da obra poder-se estender por mais tempo, e Edino, no entanto, decide encerrar com simplicidade e sinceridade: marcas de personalidade inconfundível.

É lamentável que programas icónicos da televisão brasileira, como o Roda-Viva, por exemplo, nunca tenham pautado entrevistas com nomes da música como Mozart Camargo Guarnieri, José Siqueira, Francisco Mignone, Jamary Oliveira ou Edino Krieger. Ouçam Edino, ouçam o Brasil que há em seu Edino, ouçam-no em inteligência e perspicácia musical! Ouçamo-nos através de suas obras: é esse nosso dever enquanto diletantes, amantes das Artes, e percebamo-nos como apreciadores sinceros dessa nossa Arte própria, por meio desses nossos grandes referenciais.



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  1. Um texto rico em informações sobre esse grande músico. Parabéns pela escolha e pela explanação tão detalhada.

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  2. Super parabenizando pelo brilhante texto ~~breve bibliografico do nosso Edino Krieger~~~meu caro amigo Samuel Cavalcanti!!!
    Paulo Roberto Rocha

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  3. Hemingway disse que ia ao Prado e ao Louvre pra aprender a escrever com Cézanne. Ao ler teus textos e os de Germano Romero, vejo que se pode dizer o mesmo ouvindo e fazendo música.

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