Parecia um homem comum. Talvez um funcionário público modesto, talvez um guarda-livros, antiga profissão fadada à extinção, pelo menos no nome. De paletó, sua segunda pele, óculos redondos de lentes grossas, realçadoras de uma miopia congênita, a surrada pasta de couro na mão, símbolo de seu ofício e de sua austeridade, modo de ser natural de quem só se importava com o que era essencial. Sem falar no chapéu de feltro, adereço indispensável para os homens da época. Quem passasse menos atento por aquela tranquila esquina do Jardim Botânico, bucólico bairro de um Rio de Janeiro ainda aprazível, e visse aquele homem de pé, esperando o bonde como qualquer mortal, não desconfiaria nunca de sua verdadeira identidade, a despeito de sua já reconhecida proeminência na vida pública nacional.
Para ele, estar ali, como qualquer cidadão, nada tinha de extraordinário nem de inautêntico. Ali - nem em lugar nenhum, na verdade -, não fazia teatro, não representava para ser visto pelos outros, em afetada e falsa simplicidade, tão ao gosto dos políticos profissionais. Não. Ali, ele era apenas ele mesmo, em sua mais fiel natureza, a que trazia desde o berço e que carregaria, como uma marca pessoal, até o fim de seus dias. E ele era mesmo assim, sem vaidades mundanas, sem ostentações frívolas, um homem que em quase tudo era comum, igual aos seus semelhantes. Salvo no talento, na coragem, na liderança e na atuação competente e proba na vida pública, qualidades pessoais que o elevaram aos mais altos cargos e papéis na república brasileira do século XX.
Era natural, pois, que ficasse anônimo naquela calma esquina carioca, à espera do bonde democrático que o levaria ao prédio do Tribunal de Contas da União, onde exercia o cargo de ... ministro. Sim, ministro da mais alta Corte de Contas do país, cargo que lhe deu o título pelo qual seria tratado daí por diante. Uma vez ministro, sempre ministro. Provavelmente o único entre seus pares a usar um transporte público, por espontânea vontade, para ir ao trabalho, na história do Brasil. Exagero? Pense bem, caro leitor.
Esse mesmo homem, nos dias de maior cansaço, utilizava-se, para voltar para casa no fim da tarde, do que à época se chamava de “coletivo”. Era uma espécie de táxi que servia a várias pessoas ao mesmo tempo, daí o nome. Esse “coletivo” ia deixando os passageiros pelo caminho, dos destinos mais próximos aos mais distantes, numa convivência forçada de estranhos, mas amistosa, e que às vezes resultava em conversas superficiais sobre acontecimentos recentes da cidade e do país. Numa dessas vezes, um passageiro ficou a olhar para o homem com a velha pasta nas mãos, como se já o conhecesse, numa insistência quase incômoda. Tivesse demorado mais um pouco e o homem certamente tê-lo-ia interpelado, para perguntar-lhe por que razão o olhava tão fixamente. Mas não foi necessário o embate. O passageiro desceu logo adiante. Mas ao descer, teve ainda tempo de dizer ao homem, sem cerimônia: “Colega, você parece um bocado com o Zé Américo. Não fosse a pasta ...”. E mais: “Tinha gente aqui no táxi que só faltava jurar ...”. E antes que o “coletivo” partisse, outro passageiro completou: “O senhor devia ser muito orgulhoso de se parecer tanto com um homem como o Zé Américo”. Veja só. É de se imaginar o que terá dito ou pensado o homem tímido, com a desgastada pasta sobre as pernas.
Tudo isso, caro leitor, foi bela e originalmente contado por Juarez da Gama Batista no livro em que traça o mais profundo e o mais literário perfil do grande paraibano, uma obra magistral, digna do retratista e do retratado. Vez em quando, volto a lê-la, para relembrar a personalidade e a vida exemplares daquele que um dia chamaram “o homem de Areia” - e também “o solitário de Tambaú”, numa alusão à terra onde nasceu e ao voluntário recolhimento na praia de mesmo nome.
Para mim, esse homem imenso que ia de bonde para o trabalho é a maior figura pública da Paraíba, em todos os tempos, sem demérito para alguns poucos outros, também notáveis. E não desejo polemizar sobre isso (quem foi o maior), pois trata-se apenas de uma escolha pessoal, baseada em íntimas afinidades de temperamento. Apenas isso. Não pretendo desconhecer nem negar outras grandezas, outros valores que também louvo e admiro. Mas cada qual tem seu altar particular com os santos de sua devoção.
O certo é que a cada leitura do livro de Juarez, a mais recente compartilhada com o professor Wilson Marinho, o retratado se agiganta. E, comparando-o com os homens públicos de nossa época, salvo uma ou outra exceção, mais ele cresce, como se isso fosse ainda possível.
De pé, na esquina, esperando o bonde. Eis o homem.