Otacílio era o ferreiro. A oficina ficava entre uma marcenaria e o armazém do meu pai. Era um tipo simples, calmo, religioso, de poucas palavras.
A mulher morreu de parto, a criança resistiu. Sem ter como criar, disse à parteira:
— Mariana, você não tem filhos e a menina precisa de uma mãe.
Foi assim que Mariana se tornou mãe de Isabel. E dez anos se passaram. Um dia Isabel voltava da escola. Quando entrou em casa encontrou a mãe caída na cozinha.
Mariana parteira morrera de repente, sem ninguém para acudir, nenhuma despedida.
O padre rezou a missa do domingo com o coração partido porque gostava de Mariana – aliás, a cidade inteira gostava dela. Uma pessoa querida e madrinha de dezenas de meninos, todos promessas da hora do primeiro choro, como forma de agradecimento e atenção.
O padre até chorou, de dó e piedade. E quem não se emocionou ao ver a menina desolada, numa falta infinda, nos braços da minha mãe? — Mariana fez tudo com dedicação e amor, sem nunca esperar ou querer nada em troca... – disse o padre.
As palavras chegaram confusas à mente de Otacílio, que pensava no futuro da filha.
No caminho da oficina, remoeu os pensamentos.
“Outra vez a menina tinha ficado sem mãe, sem ninguém para lhe assegurar a educação com o mesmo afeto e amor da parteira. Povo bom aquele de tomar conta dela como se fosse uma filha, mas isso, sabia, seria por pouco tempo. E depois?”
O povo a que se referia era a nossa família. Minha mãe, tão logo soubera do acontecido, correu para lá, cuidou de tudo.
Depois da missa de sétimo dia, no meio da semana, Otacílio bateu em nossa porta para ver a filha e agradecer, mais uma vez, pela atenção e o cuidado que ela vinha recebendo.
Disse-lhe minha mãe: “Não se preocupe, vamos lhe dar todo conforto e carinho. Ela já tem apego aos meus filhos, não será difícil conviver.“
Um mês havia se passado, certa manhã Otacílio veio à nossa casa outra vez; queria conversar com meus pais. Reticente, disse que tinha escrito a uma prima, em Natal, pedindo para terminar de criar a filha. A mulher estava chegando para buscá-la.
A notícia deixou minha mãe muito amargurada, e como era seu jeito, guardou dentro de si a angústia e a indignação.
Quando o velho foi embora, ela, embora já imaginasse a opinião do meu pai, perguntou, mesmo assim, o que ele achava.
Diz-se que o maior costume da vida é criar situações, sobre as quais uns estão maduros e prontos para enfrentar, outros não. E outros preferem, simplesmente, respeitar a opinião do outro, mesmo sabendo que o outro pode estar errado.
Meu pai era assim, não gostava de interferir, a menos que fosse inquirido, que lhe pedissem a opinião. Por isso, sua resposta foi dizer que era melhor não interferir.
“Sabe como é, a gente assume essa responsabilidade, depois acontece alguma coisa, Otacílio vai nos crucificar!”
A notícia causou muita tristeza a todos; à menina, tristeza e desespero. No início chorou, emburrou-se, teimou em ficar, mas acabou cedendo à decisão do destino.
Veio o dia. Um automóvel de luxo parou em frente à nossa casa. Eu brincava na praça com alguns amigos, entre eles Rubinho. Corri para dar a notícia. Mas antes de entrar pude ver, com grande desgosto, além do motorista, um homem de terno e gravata.
Havia ainda uma mulher com metade do rosto encoberto por estranhos óculos escuros. Pelo jeito estava sentindo a mesma enxaqueca de dona Perpétua, a mulher do padeiro, que sempre espremia a cabeça com as mãos e jamais a vi sorrir. “É enxaqueca,” dizia minha mãe. Meu pai achava que era ruindade.
Tive essa impressão quando dei alguns passos para perto da porta traseira do veículo e a vi enfiar os dedos nos cabelos com o mesmo ar circunspecto e rígido de dona Perpétua. “Deve ser a tal prima de seu Otacílio“, pensei.
Nessa época a praça da nossa rua era muito bem cuidada. Havia um coreto hexagonal contornado por canteiros gramados e verdejantes, flores brancas no entorno e roseiras coloridas, além de frondosas árvores.
Em minha mente eu já odiava aquela mulher, desde o momento em que o ferreiro anunciou que ela viria buscar Isabel. Essa sensação cresceu quando a vi descer do carro embrulhada num vestido preto.
Percebi que estavam encantados com o coreto, pois logo foram em direção a ele. Enquanto isso, entrei em casa e avisei que a mulher tinha chegado. Minha mãe encheu os olhos d´água e meu pai respirou fundo. Quando o ar saiu completamente do seu peito, ele foi atender as visitas. Eu o segui.
Ao ver aquela gente meu pai, embora reservado, foi receptivo, cumprimentou-os e disse-lhes que minha mãe tinha feito café e preparado alguns biscoitos. Contudo, o casal agradeceu a atenção com o argumento de que tinham compromisso em Natal e que, por isso, não podiam se demorar.
Minutos depois Otacílio surgiu na esquina. Ao aproximar-se, não foi difícil perceber nele um aspecto de quem andara torturado emocionalmente.
Apesar de carregar o peso de uma alma humilhada e compungida, sorriu, enquanto apertava calmamente a mão do meu pai e a dos visitantes. Entretanto, a mulher, que agora estava sentada num banco da praça, e no banco ficou, não lhe fez qualquer mesura; limitou-se a fitá-lo e medi-lo por meio dos óculos grandes e escuros.
Senti que ela não lhe tinha a menor consideração, pois o olhou com visível frieza. Senti ainda que, para ela, o primo não passava de um velho ferreiro, sem estudo, sem dinheiro, sem ninguém.
Até hoje eu penso que essa impressão foi o que motivou todo o escarcéu que estava por vir.
Arrogante, ela fora completamente indiferente ao sentimento de amargura que habitava o coração daquele pai, o de entregar a filha, com desafeição, a um futuro absolutamente desconhecido.
Minha mãe surgiu no portão dando um sinal ao meu pai. Isso quis dizer que Isabel estava pronta e que todos viessem ao terraço para uma conversa mais reservada sobre o seu futuro.
Durante a conversa, que foi breve, percebi que meus pais se entreolhavam o tempo todo com gestos de muita indignação. Fiquei desolado, pois entendi que insinuavam que o velho Otacílio estava cometendo um grande erro.
Meia hora depois Isabel surgiu. Estava com uma das roupas que usava para ir às missas do domingo. Embora o traje lhe deixasse bonita, a tristeza parecia inundar o seu pequeno ser, e o desengano, a sua alma. Nesse momento eu me senti mais triste que Isabel. Então, caros leitores, deixe contar o que imaginei a seguir.
Imaginei Isabel abraçando todos nós num gesto de agradecimento e carinho, mas sem pronunciar nenhuma palavra.
Em minha imaginação, vi-a entrar no banco traseiro do automóvel, vi a mulher que eu odiava rir de todos nós, vi o carro partir, e antes de sumir na esquina, vi Isabel se virar e nos dizer um último adeus com sua mão delicada e o rosto coberto de lágrimas.
Mas quando voltei à realidade, percebi que havia começado uma discussão. O homem manso e covarde, que era Otacílio, inesperadamente se transformara num ser irreconhecível, irracional e feroz.
“Minha filha não vai mais a lugar nenhum”, disse num tom áspero e resoluto ao mesmo tempo em que puxou Isabel pelo braço em direção aos braços da minha mãe, que depressa a carregou para dentro de casa. A mulher tinha encarnado o diabo. Os olhos dobraram de tamanho e sua cara rígida tomara uma aparência ainda mais espantosa. Veio para cima de Otacílio, mas naquele momento meu pai se meteu entre os dois, evitando um confronto físico.
O marido, que estava um pouco atrás, parecia patético, a observar tudo impassível e mudo. Jogando os braços para Oticílio, ela berrou: “ Você não devia ter feito isso, Otacílio! Você não devia ter feito isso!”
Meu pai disse:
— Minha senhora, eu não tenho nada a ver com essa história, mas Otacílio está certo. Se fosse um filho meu podia morrer de fome e ignorante, mas ia morrer comigo.
— E por que esse maricas me fez vir até aqui?
O ferreiro quis avançar contra a prima, mas novamente meu pai interferiu, dizendo secamente:
— Chega! Chega minha senhora!
E voltando-se para o marido que continuava mudo, disse:
— Eu acho melhor vocês irem embora!
— Vamos sim, vamos embora dessa porcaria de lugar! – disse ela histérica e inconformada. E antes de entrar no carro e bater a porta com muita força, acrescentou:
— Eu vou amaldiçoar você e sua filha pelo resto da minha vida, entendeu Otacílio... Entendeu?
E dessa vez não foi minha imaginação. Foi de verdade. Eu vi o automóvel partir, e não era Isabel que nos olhava através do banco traseiro, mas aquela mulher que eu continuei odiando por muito e muito tempo.