Qual a relação entre uma cerveja, uma ursa e um continente? O leitor pode estranhar a pergunta, mas estou me referindo à Antárctica, cujo nome envolve estes três elementos tão díspares. E, se o continente é Antárctica, por que o chamamos de Antártida? Vamos por partes.
O antigo rótulo da cerveja Antarctica — assim mesmo, sem acento e com “c” —, pelo menos aquele que eu alcancei, apresentava-se com dois pinguins dentro de uma elipse, tendo sob os pés ramos de cevada. A logomarca nos remetia ao cereal de que a cerveja era feita, além de induzir o consumidor a pensar num produto para ser consumido gelado. Sendo os pinguins animais que habitam as regiões muito frias, como a Antárctica, tida como o continente mais frio da terra, localizado no Círculo Polar Antárctico, o nome da cerveja revela-se, portanto, diretamente ligado ao continente e suas condições ambientais.
Se o nome da cerveja é devido ao nome do continente, porque a cerveja não é Antártida, como costuma ser chamado por aqui? Primeiro, vamos esclarecer o nome original. Chama-se Antárctica porque ele se localiza no ponto contrário ao Árctico, situando-se ambos nos polos — O círculo polar ártico e o círculo polar antártico, numa grafia menos etimológica.
O Ártico (pelo latim arctĭcus, do grego ἀρκιτκός) recebe esse nome por estar situado no Norte. A relação entre Arctico e norte se dá por causa das constelações da Ursa Maior e da Ursa Menor, que, por sua posição sempre ao norte, serviram de orientação aos navegantes e viajantes em geral. A diferença que existe entre ambas reside no fato de que apenas a Ursa Maior pode ser vista no hemisfério sul, onde nos encontramos. Daqui, não podemos ver a Ursa Menor, cuja estrela mais brilhante é a Polaris, que permanece fixa sobre o polo norte celestial, parecendo que as demais estrelas giram ao seu redor.
A etimologia de Árctico aponta para Arktos (ἄρκτος), cujo significado em grego, urso/a, nomeia as constelações. O termo está vinculado ao mito de Calisto, jovem sacerdotisa do séquito de Diana. Júpiter se enamora dela e engendra o jovem Arcas. Diana a expulsa do seu culto e Juno, enciumada com os amores furtivos do marido, a transforma em uma ursa. O jovem Arcas cresce e torna-se caçador, quase matando a mãe, quando com ela se depara, sem tê-la reconhecido na sua forma animal. Júpiter arrebata ambos e os transforma em constelações vizinhas no céu (Ovídio, Metamorfoses, Livro II, versos 401-530). Arcas recebe o nome de Arcturo (ἀρκτοῦρος), estrela alfa da constelação do Boieiro, cujo nome, em grego, significa o guardião da Ursa, perfeitamente avistada aqui, no hemisfério sul. A mãe, vigiada pelo filho, para impedi-la de banhar-se nas águas de Thétis, o mar – ordem de Juno —, será a constelação da Ursa Maior. Agora, já podemos deduzir o significado de Antárctico: o que está no sentido oposto ao Árctico, sendo este o polo norte e aquele o polo sul.
Quanto à preferência pela forma Antártida em lugar de Antárctica, a explicação vem através da famosa lei fonética do menor esforço, responsável por acomodações fonéticas que tornam mais fácil a prolação. Pronunciar Antárctica ou Antártica é muito difícil. A dificuldade reside no encontro entre três fonemas velares /r/, /c/, /c/ e um fonema dental /t/.
Na realidade, a forma latina Antarctica, emprestada ao grego ἀρκιτκός, encontra-se esmagada entre dois /c/. Essa articulação é dificultada pelo recuo da língua, que as velares /c/ e /r/ exigem (antarc—), para, em seguida, a ponta da língua alongar-se em direção aos incisivos centrais, permitindo a articulação da ápico-dental /t/ (—ti—), para, ainda uma vez, a língua recuar, na prolação da sílaba final (—ca): antárctica.
A facilitação da pronúncia ocorre quando um fonema dental, como o /t/, encontra outro dental, como o /d/. Estes dois fonemas, /t/ e /d/, são gêmeos, tecnicamente chamados homorgânicos, possuindo o mesmo ponto de articulação: eles são oclusivos e ápico-dentais, o que significa que, no momento da articulação, há um fechamento da boca e a ponta da língua toca os dentes incisivos centrais, para que haja a prolação. A única diferença entre eles é que o /t/ é um fonema surdo e o /d/ é sonoro. O que determina ser surdo ou sonoro é a vibração das cordas vocais ou pregas vocais, no momento da passagem do ar.
O resultado da lei do menor esforço é a queda do primeiro /c/, num fenômeno chamado síncope, por ele ter-se tornado mudo na passagem do latim para o português, e a assimilação com sonorização do segundo /c/ em /d/, exigida pelo seu “irmão gêmeo” /t/:
Por outro lado, ártico nunca vai dar ártido, pois a articulação naquela palavra é mais fácil. O que determinou a transformação de Antártica em Antártida foi a pressão dos dois /t/ sobre o /c/. Ressalte-se que a lei do menor esforço não é ditada por gramáticos ou linguistas, mas uma lei natural, decorrente da necessidade de nosso cérebro de economizar energia, e que impõe à língua movimentação e expansão, tendo em vista tratar-se a língua de um corpo vivo.
Agora, vamos e convenhamos: deixando de lado toda a conversa técnica sobre os termos, uma cerveja gelada passando pela ponta da língua, tocando o véu palatino e aguando grande parte da cavidade supraglótica, que vulgarmente chamamos boca, é gostosa ou não é?