Imperceptível ou mesmo que negado seja, há nos íntimos recônditos da nossa consciência um traço, uma intuição, algo que nos sussurra um sopro divino diante do existir. É difícil não sentir, ainda que ínfima, uma ponta de entusiasmo, de emoção, ao contemplar o mundo, o céu, o mar, a vida, flores, estrelas, animais, plantas, e tudo o que existe.
É quase impossível que sob o olhar da imaginação, da sensação ao deixar os pensamentos levitarem acima de si próprio, elevando-se supostamente além da superfície terrestre, alguém não se emocione com a imensidão infinita, o turbilhão cósmico em movimento coordenado por leis absolutamente perfeitas. Mesmo que a vida nos pareça paradoxalmente injusta, controversa, é difícil supor que os fatos, vicissitudes, trágicos ou cômicos, felizes ou infelizes, não se abriguem sob os mecanismos que regem a ordem do universo, os mesmos cânones milenares que fazem a lua cheia surgir e espelhar-se na exata hora em que o mar se acalma, enquanto o Sol não explode trazendo de volta as manhãs.
Esta intuição apenas aguarda o despertar inspirador quando no íntimo ela pulsa. Por vezes canalizadas pelas maravilhas a se descortinar, interior ou exteriormente, em cada instante vivido, observado, experimentado.
É presumível que os artistas, poetas, músicos, escritores, ou qualquer ser humano que permita o afloramento de seus encantos líricos perante o fenômeno da existência, sintonizem-se com o que emana do mistério da Criação. É a porta que se abre ao reino dos céus que Jesus mencionou existir em cada um de nós, latente ou fluente.
Muitas criações artísticas germinaram iluminadas pelos benéficos fluidos deste encantamento divino. Às vezes esculpidas por forças alheias à vontade consciente, em meio a ímpetos de origem desconhecida, ainda que transmitidos por intuitivas afinidades.
Alguns autores souberam magistralmente moldar suas obras por meio de excelsos lampejos e nelas reforçaram convicções de religiosidade ou transcendência espiritual.
Mesmo sob circunstâncias inexoráveis de um doloroso destino, muitos deixaram transparecer mística nitescência em suas criações. Beethoven, Mozart, Camus, Tchaikosky, Van Gogh, Schumann, Schubert, Nietzsche, Rimbaud, Baudelaire. Ainda que alguns negassem Deus ou qualquer tipo de fé no imaterial, há alguma sublimação na tristeza impressa em suas mágoas, conflitos existenciais, questionamentos filosóficos e dualismo conceitual.
O escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe, notável do romantismo literário - que está para os germanos como Dante para os italianos e Shakespeare para a Inglaterra -, resgatou o que havia de divino até no seu “maldito” Fausto. Quem sabe compelido a salvar o que há de sagrado no ser humano, mesmo em se tratando de alguém que compactuou com o “demônio”, Goethe promove a ascensão espiritual do personagem que encarna em sua personalidade a essência da humanidade inteira.
Mergulhado na angústia da fútil e desenfreada ambição que termina levando-o à desesperada ideia suicida, Fausto é inundado no momento crucial do profundo encontro consigo mesmo, pela luz redentora da humildade, única virtude capaz de fazê-lo compreender o sentido da vida.
Goethe é apenas um exemplo entre muitos gênios criadores que impingiram, de forma explícita ou implícita a noção de uma entidade divina superior à nossa condição nos trabalhos que mereceram relevância artística e histórica.
Um milênio antes da "ressurreição" que Goethe outorgou a Fausto na segunda parte de sua tragédia , o que de certa forma intrigou leitores e literatos, um abade beneditino nascido em Mainz (Alemanha), chamado Rábano Mauro, compunha o hino Veni Creator Spiritus (Vem, Espírito Criador), para ser cantado em louvor ao Espírito Santo na liturgia cristã. Trata-se de um conclame à iluminação dos sentidos para infundir amor nos corações e fortalecer a fé no Deus Criador.
A fervorosa exaltação deste hino ao Santo Espírito perpassou por todo o milênio e continua sendo entoado em venerações ritualísticas católicas, principalmente por ocasião do Pentecostes, registrado nas escrituras como fenômeno mediúnico que celebrou a conexão terrena com entidades iluminadas.
Gustav Mahler dedicou sua colossal oitava sinfonia, que se tornou conhecida como “Sinfonia dos Mil”, ao Espírito Criador. Para se referir a Deus, o compositor não poupou recursos criativos e concebeu, talvez, a obra de maior grandeza e envergadura da literatura musical, pouco executada pela própria dificuldade de encenação e interpretação. Além de uma orquestra imensa, acrescida de órgão, piano, glockenspiel, numerosa percussão, metais duplicados, inclusive fora do palco, bandolim, dois corais completos, oito vozes solistas e mais um coro infantil, o que totaliza cerca de no mínimo 600 músicos.
Quando estreou no Neue Musik-Festhalle de Munique, em 1910, Mahler escalou um número ainda maior de musicistas e para o equilíbrio sonoro entre instrumentos e vozes a orquestra contou com mais de 170 músicos, chegando a um total de 1.030 executantes! Teria vindo daí o cognome “Sinfonia dos Mil", nem tão aprovado pelo autor.
Se Beethoven surpreendeu sua época com a inserção de coral e 4 vozes solistas no último movimento da Nona Sinfonia, imaginem a ousadia de incluir 3 corais completos e mais 8 vozes (3 sopranos, 2 altos, 1 barítono, 1 tenor e 1 baixo).
A melancolia existencial presente em outros trabalhos de Mahler não encontra espaço considerável nesta sinfonia, exceto em algumas passagens relacionadas à narrativa. O idílio metafísico a que se propõe não permite que a tristeza se sobreponha ao conjunto de seu caráter transcendental. Em busca dos efeitos sinfônicos nunca alcançados, que pudessem espelhar a magnitude da Criação, o próprio autor sugere que as vozes “não reflitam apenas sons, mas o cosmo em movimento”.
A primeira parte, apenas um terço da obra, é uma ode luminosa que explode com o hino medieval Veni Creator Spiritus , a suplicar que o Espírito Santo, “intercessor de Deus, excelso dom sem par, fonte viva, fogo, amor, unção divina e salutar, visite nossas almas e nos preencha os corações com seus dons celestiais”. E prossegue em clima de ostensiva honraria com urras ao Criador .
O apurado romantismo se funde na complexa tessitura melódica e se justapõe em pavimentos sonoros vocais e instrumentais com momentos de densidade impressionante. Coros femininos, masculinos, infantis, mesclam-se em polifonia rica e robusta poucas vezes vista na música sinfônica .
O louvor à onipotência divina interpõe-se alternando-se em letra e música, clímax e surdinas, firmando-se como cântico excepcionalmente burilado na arrebatadora sinfonia que consagra a escolha do hino sagrado .
Os dezesseis momentos (seis sobre o hino de autoria de Rábano Mauro, na primeira parte, e dez sobre o Fausto II, na segunda) se fundem em toda sinfonia como grande e único oratório. Nestes episódios a música traduz os espectros essenciais da narrativa, entre dramáticos, poéticos e devotos, mas é notório que o lirismo se avulta com predomínio fulcral na esperança, fé e otimismo extasiante .
O entusiasmo é supremacia que se abraça efusiva neste primeiro tomo da sinfonia, nas sequências indicadas como “Veni Creator Spiritus” (Vem, Espírito Criador), “Imple superna gratia” (Preenche-nos com a graça celestial), “Infirma nostri corporis” (Fortalece nossos corpos), “Accende lumen sensibus” (Acende-nos a luz dos sentimentos), “Da gaudiorum praemia” (Dá-nos a alegria da recompensa) e “Gloria sit Patri Dominum” (Glória ao Deus Pai).
A conclusão do que é dedicado ao hino cristão é meteórica. O conjunto coral e orquestral se ergue com força máxima para coroar a mensagem exaltando glória a Deus, e encerra a participação do Venni Creator Spiritus , datado do século IX. Após merecida pausa, vem o segundo movimento, com texto de quase mil anos depois, símbolo da literatura germânica - o "Fausto" de Goethe - em suas últimas cenas. A junção de mensagens afins sugere o desejo de Mahler em falar da redenção através do Amor.
Tudo começa em calma referência às belezas da Terra, como narra o poema aos sussurros do coro que descrevem cânions, bosques, precipícios, montanhas, desolação, e fazem menção aos monges que vivem misteriosamente em retiro nas fendas das rochas. O clima é delineado pelas cordas beliscadas gravemente que dialogam com sopros. O tema principal em frase crescente de cinco notas (mi-fá-sol-ré-dó) é exposto, depois se inverte e transita por outros registros e naipes, integrando pontual e estruturalmente toda a segunda parte .
Este prelúdio irradia a última visão de Fausto na Terra, a imagem da natureza em seu estado mais sublime, que o faz sentir a linguagem por meio da qual Deus expressa amor infinito. Perante a descoberta que ecoa na intimidade, ele se conscientiza da ilusão de suas supostas vitórias. De nada lhe valeram, como de nada valem as conquistas do saber, do poder, da luxúria, gula e paixões efêmeras, a quem aspira insights de maior transcendência na vida, mas por ele ambicionadas à intensidade capaz de aceitar um pacto maléfico com forças demoníacas.
As vozes masculinas, obviamente, são as que se inauguram em texto afinado com a iluminação. Na primeira aparição, Fausto se redime despindo-se da vaidade e passa a falar de seu “desejo de Deus” em busca da felicidade que se eterniza no amor universal .
O cenário descrito no poema, aqui cantado pelo protagonista são desfiladeiros entre rochas onde vivem religiosos isolados do mundo (classificados como Ecstaticus, Profundus e Seraphicus) que costumam entoar cânticos sobre o amor puro, acima de trivialidades, que está implícito e explícito nas belezas naturais, expressão máxima do Divino. Por cima da floresta em que se abrigam, flutua uma “nuvem” de crianças que morreram ao nascer, tornaram-se felizes com a existência, mas que são sempre incentivadas a voar para esferas mais altas.
Então um duelo magistral, romântico e atormentado estabelece-se entre o personagem e a orquestra, sob o olhar de Fausto que oscila entre profundezas e altitudes, precipícios e abismos por onde mil riachos fluem e brilham através do amor todo poderoso que tudo forma e valoriza. Ele compreende que nas chuvas que regam os vales, nos relâmpagos que caem em chamas, está o equilíbrio do planeta. Assim, em meio à copiosa tessitura instrumental, clama ao poder supremo para que lhe apazigue o pensamento e ilumine definitivamente o coração carente .
A retrospectiva diante de uma existência vã abre-lhe os olhos para verdades dantes não percebidas e proporciona-lhe, então, o encontro com o ser. O ser puro, simples, cristalino, que se confunde com as virtudes da criação divina, é o que agora Fausto vê refletido dentro de si. A humildade que flui de tais descobertas torna-se o ponto de partida para a unção espiritual e iluminação da consciência.
Este aspecto do drama lembra, de certa maneira, a história do próprio compositor, Mahler, que após desfrutar benesses de uma carreira exitosa, atuar em cargos importantes, cultivar amizades valiosas, usar o talento privilegiado para compor obras revolucionárias, premiadas e extremamente aplaudidas, enfrentou fatais vicissitudes e dissabores. Entretanto, logrou admirável superação ao se valer do sofrimento e das dificuldades como ferramentas para a devoção e o burilamento espiritual nitidamente impressos na arte que criou.
Proferidas as súplicas, Fausto está apto à ascensão e chegam os anjos para a nobre missão de salvá-lo pela merecida remissão, mostrando-lhe o valor da solidariedade coletiva e da união entre os semelhantes. Os coros se alternam entre os meninos “mais jovens”, os “bem-aventurados” e os “mais perfeitos”, asseguram que em Fausto viceja o tormento do amor e conclamam-no a resgatar os tesouros da alma que o livrarão da punição do inferno. Por fim, convidam-no a livrar-se definitivamente do peso da matéria e aliviar-se no desfrute da nova primavera nos mundos superiores. Por fim, arrebatado em bendito deslumbramento é abençoado para ser encaminhado às alturas. Ao se aproximar das paragens superiores, se extasia com o brilho supremo e implora para ser acolhido na tenda celestial. Ao cabo, ouve-se a parte orquestral mais bela e romântica de toda a peça, em que Mahler incorpora imensurável musicalidade ao sagrado neste instante de luz coroando com incrível beleza , acompanhado por todas as harpas.
Então, passa a escutar as boas vindas de “pecadoras” iluminadas pela penitência e arrependimento, que pedem por seu espírito, em solos e coros representados por figuras bíblicas femininas: a mulher de má fama (que ungiu os pés de Cristo), a samaritana, a “Maria do Egito” e a “mulher penitente”, Margarida (a sua Gretchen), marcante protagonista da tragédia goetheana, condenada pelo infanticídio, mas perdoada ao cumprir pena e se negar à fuga que lhe foi proposta. As cenas das três solistas transcorre sob bucólico colorido instrumental em clima que cresce poeticamente e se conclui com as três cantando juntas e felizes com a chegada do bendito, com a volta dos anjos, de sua amada Margarida, e tudo se finaliza com a bênção na Virgem Santíssima na honraria final para recebê-lo, enfim, nos planos espirituais mais elevados. O enaltecimento do ser feminino pode ser considerado uma elegia de Mahler à superioridade da mulher entre os humanos.
A esta altura, percebe-se que a intrínseca afinidade com os signos da magnífica obra de Goethe foi decisiva a figurar como partícipe deste suntuoso capítulo da literatura musical, a Sinfonia nº 8. Mahler usou a estrutura, as cores e as tintas com que o destino lhe desenhou a vida para erigir uma verdadeira catedral sonora na qual abrigou todos os fervores de sua crença, em uma construção espetacularmente fabulosa. Supõe-se que ele tenha se referido à oitava como a sinfonia favorita, hipótese que se coaduna com sua extraordinária dimensão.
Quando a música se prepara para findar, ouve-se um dos grandiosos momentos de toda a obra de Gustav Mahler: as duas últimas seções desta “Sinfonia dos Mil”. Os coros então se unem para a consagração do triunfo de Fausto sobre a existência material e a plenitude de seu novo estado de transcendência e felicidade efetiva-se na fusão completa de tudo o que se narrou, honrou e louvou. Considerar este final apenas um epílogo seria pouco para se referir à densidade incandescente do magnífico encerramento, que está longe de significar o fim de algo, mas o renascer de um sentimento que se perpetuará na fé e na esperança de cada ouvinte, amante da arte, do belo e, principalmente, das coisas de Deus.