Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer.
E não tivesse mais irmandade com as coisas.
Fernando Pessoa
Fernando Pessoa
De vez em quando me assomam impertinentes pensamentos de que os dias estão se esvaindo numa incontida hemorragia em que o tempo celeremente vai sendo consumido. Tempus Fugit. E, o que o resta dos dias são apenas fagulhas efêmeras que mal conseguem alumiar os sentimentos de esperança. A vida segue rumo ao seu final num curso imprevisível.
Os dias continuam surgindo regados por uma luz inebriante trazendo à tona uma estranha e forte sensação, nos revelando que, apesar dos desastres do presente a vida ainda insiste em continuar. Sinto epidermicamente a sensação de que a cada dia que se descortina uma contagem regressiva contabilizando negativamente e jornadas a menos. A idade nos impõe limites, e temos que saber que o tempo orgânico não fará concessões. É preciso compreender e aceitar que o nosso tempo deveria ser sempre o tempo de viver e nada mais.
Neste interregno há que se aquilatar que olhando o mundo, a beleza das pessoas e da natureza atenuam o peso da idade que desaparece quando se sabe alegremente viver.
A idade pouco importa o fundamental é ter a alegria de ser e viver o seu tempo. O olhar o que é belo rejuvenesce e atenua o peso da solidão. Aprender a conviver com a solidão não é simples. Difícil é se bastar a si mesmo. A solidão paradoxalmente anima ironicamente as forças internas que alimentam um superior. Ampara a compreensão de que o estar sozinho é como retornar a primeiro momento da vida: o nascer.
Há que se ter a precisão e a paciência de que a vida nos projeta, quaisquer que sejam as trilhas do cotidiano, passo a passo, golpe a golpe, e nos conduz à dura dimensão de que a cada dia nos encaminhamos para o momento final. Difícil é conviver com o sentimento de que um tempo a mais significa um caminho a menos. No meio da vida que ainda viceja espreitamos a distância e o tempo que nos separa da morte. Sabemos que ela virá no espectro de um calendário que não nos revela o tempo que dias nos resta.
Há uma relação dialética, quase esquizoide entre a vida e a morte. Qual o significado teria vida se não fosse à morte. É abominável saber que iremos embora, no entanto tão ou mais brutal é nos afogarmos nas nossas desesperadas angustias.
A morte não me atemoriza. Renitentemente sempre advoguei a tese de que o mais dramático que morrer é não saber ao seu tempo: contemplar a vida. Sempre soube que ir embora para sempre era previsível, e que esta clareza deve ser alicerçada e, inspirar a força moral e emocional que temos de ter quando o enfrentamento final vier. Raros conseguem digerir que a única certeza da vida: é a morte.
O drama humano sempre foi mediado por eventos naturais de natureza orgânica, e que teríamos uma espera a ser consumida. Incertezas se impunham. No angustiado tempo contemporâneo impera o sentimento de que morte está à espreita, e que a sensação dominante é a de que aos milhões de desesperados é o de que esta virá sem pedir licença e aviso prévio. Entre o tempo da infecção e a terminalidade da vida é de um abrir e fechar de olhos.
Hoje diferente de ontem em que predominava a causalidade e alguma surpresa, aqui e agora, com a brutalidade pandêmica prevalece à plena e angustiante certeza de que o tempo deixou de ser um aliado à vida, revelando ser uma agenda indecifrável diante dos episódios de sacrifício humano entronizado por milhões de mortes prematuras. Com muita antecedência, não mais por uma natural causalidade jovens e velhos começam a suspeitar que a morte os levarão a um encilhamento fatal por razões endêmicas.
O prazer de todos os dias ao abrir os olhos e comemorar a vida já não é o mesmo. Estamos diante de sucessivas destruições que nos são reportadas pelas estatísticas fatais que afrontam a alegria da dimensão humana. O sofrimento, a dor, o desespero são reduzidos à frieza de gráficos cartesianos das informações sobre a letalidade quotidiana. E nos reconfortamos de modo irracional ao constatar que ainda poderemos ser frias e sombrias estatísticas.
Dói-me apenas ser apartado para sempre dos meus filhos, dos amores findos que ainda vivem no meu sonhar. Lamentarei ainda o afeto e a distância dos meus queridos amigos.Instalaram-se o desespero e a angustia da morte por antecedência. O tempo do viver e do morrer que se ajustava a uma previsibilidade biológica foi tragicamente mutilado por ocorrências nefastas. Todos os dias estamos agonizando. A única certeza que temos hoje é estamos prematuramente perdendo a doçura da vida. Parece, que não mais a ideia distante da morte nos perturba, o que hoje mais desespera é o rígido pensamento sobre o imediatismo dela. E ao assim pensar estamos vivenciando a distância existe entre o medo, e o desejo de não mais assim viver, porque aos poucos vamos aniquilando a alegria da vida.
É abominável saber que iremos embora, no entanto tão ou mais brutal é nos afogarmos nas nossas angustias.
Deitar, dormir pode prenunciar um caminho sem volta. Não tenho, nem nunca tive o arrebatado medo da morte. Hoje, tenho apenas o enfado de uma imprevisível e prolongada espera. Viver o que estamos vivendo, percebendo todos os dias os acenos da miséria humana. Não sabemos mais que mundo é este, que destrói brutalmente inocentes, que nos aniquila emocionalmente, e que mortifica o bem viver. A cada dia somos dilacerados porque no dia a dia estamos nos preparando para morrer.
Embora, enrustidamente me sinto pronto para partir. Dói-me apenas ser apartado para sempre dos meus filhos, dos amores findos que ainda vivem no meu sonhar. Lamentarei ainda o afeto e a distância dos meus queridos amigos.
Sou cauteloso, e não deixarei máculas éticas ou morais na minha vida pessoal. Dói-me sinceramente, ter vivido tanto, e apenas findar como um inerte e mero espectador do desastre social e politico que sepultam as rarefeitas e esmaecidas esperanças da nossa gente. Acho que já fui longe demais para viver e ver o que estou vendo.
Tive tristemente que viver episodicamente a tragédia que hoje todos nos defrontamos. A moléstia pandêmica me brindou inutilmente como uma trégua de Pirro que me afastou de uma presumível partida. Apenas me espreitou, acenou, e cinicamente me permitiu ainda viver. A COVID passou, e eu alegremente a observei dobrando a esquina.
Caminhei horas, dias e noites na minha Via Crucis me preparando para o pior. E numa vereda resplandecente distingui as iluminadas mãos da Virgem Maria. Fui acudido. E mais, antevendo o que poderia acontecer na sequência, defini onde deveriam ficar para sempre as minhas cinzas, e mais, preparei o meu epitáfio: “Adormeci contrariado. Não mais acordei E, como acontece a qualquer criança, sonhei sonhos lindos e findos”.
Diante do inevitável temos que estar prontos, serenos, e lúcidos para aceitar o sursis da vida, e deixar como espólio para os próximos a tranquilidade do adeus.
Nasci pela bem aventurada grandeza de minha mãe Lourdes, quero ficar sobre o amparo de outra Lourdes, a Virgem.
A Capela da Virgem de Lourdes, no Engenho Laranjeiras deverá um destes dias me abraçar.