Paris é um corpo vivo, dinâmico, que troca a pele e se transforma continuamente; que se veste e que se desnuda; que se entrega ao trabalho e ao prazer. O seu ventre é Les Halles; sua cabeça e coração, a política, a especulação e o empreendimento; seus braços, a pequena e média burguesia; suas pernas, o operário; seu baixo-ventre, os prazeres lícitos e ilícitos do amor.
Paris passa sem remorsos dos médios e grandes salões aos condomínios e cortiços; do dinheiro suado e contado, obtido com o trabalho estafante, ao dinheiro farto da especulação, da política e da prevaricação, gasto prodigamente; do mesmo jeito que se veste e se resguarda, Paris se desnuda e se degrada.
Paris é uma máquina de que alguns tiram o seu sustento, ao pô-la em movimento. Outros retiram dela o excesso e o luxo, sem apertar um único botão. A maioria é esmagada, triturada por uma engrenagem sem dó, nem piedade, porque a máquina-monstro é indiferente ao esforço e à sorte dos mais fracos. Paris, sobretudo, dita a moda. E não só se veste, como veste com luxo e fricotes os que podem pagar o seu preço.
É na série Les Rougon-Macquart, de Émile Zola, constituída de 20 romances, que constatamos, mais do que a trajetória das duas famílias que dão título a esse monumento literário do mestre do naturalismo, um quadro de Paris, com algumas fugas para pequenas localidades, interligadas a essa grande, encantadora, misteriosa, memorável e assustadora cidade. Mais do que um período de transformações políticas – final da Monarquia (1848), breve Segunda República (1848-1851), abatida por um golpe de Estado (1851-1852); Segundo Império (1852-1870) e Terceira República (1870-1940) –, o que se vê é o nascimento e crescimento do capital e da burguesia comercial urbana.
Na composição desse grande e soberbo quadro, Zola monta a cabeça de Paris com Eugène Rougon, seu irmão Aristide, que troca o sobrenome para Saccard, de modo a fingir que não são parentes, e o sobrinho Octave Mouret, Rougon pelo lado da mãe, Marthe, mas que leva o nome do pai, François. Eles são, respectivamente, a política (Son excellence Eugène Rougon), a especulação (La Curée) e o empreendimento (Au Bonheur des Dames). É o dinheiro grosso, la grosse somme, que movimenta o corpo Paris.
Os braços e tronco são compostos pelos personagens de Pot-Bouile, em seu condomínio, constituído pela média burguesia comercial. As pernas são os operários e trabalhadores, donos de pequenos comércios (L’Assommoir), que habitam uma espécie de cortiço, que mói e tritura seus habitantes, cujo melhor exemplo é Gervaise Lantier. O ventre é o comércio gigantesco de comida – carnes, peixes, embutidos, verduras, legumes, frutas –, no mercado aberto de Les Halles, no centro da cidade, ambiente-personagem do romance Le ventre de Paris, de que se destaca a dona de uma boutique de embutidos (charcuterie), Lisa Quenu. O baixo-ventre dos prazeres sem-conta, da sensualidade exposta e desejada, é Nana, personagem do romance homônimo.
Assim como o corpo físico é atingido pela hereditariedade e, aos poucos, vai revelando as suas taras e a sua degradação, segundo a teoria do determinismo biológico em voga na época, o corpo social também não escapa a essa corrupção. Porém se naquele, o processo é genético, não havendo como escapar desse determinismo, neste a doença mais grave que o acomete é a hipocrisia. Vê-se, portanto, como natural uma condenação de Nana, como prostituta de luxo, mas se fecham os olhos à prostituição do casamento por interesses e, ainda mais, às traições conjugais socialmente conhecidas e aceitas, como a de Renée, com o próprio enteado (La curée), e de outras tantas personagens ricas, a exemplo de Henriette Desforges (Au Bonheur de Dames). Nana é condenada, sobretudo, por não se admitir a sua liberdade sem máscaras, que debocha das madames ditas de bem – les gens comme il faut –, diferentes apenas por não pertencerem ao mesmo nível social. A hipocrisia, em todos os tempos, tece a sua trama, embora, exponha, a quem quiser ver, os furos de uma realidade que se quer encobrir.
O grande magazine Au Bonheur des Dames, que dá nome a um dos romances, veste Paris. Seu coração pulsante a todo vapor é, ainda uma vez, Octave Mouret, que sai da média burguesia (Pot-Bouille) para o ponto mais alto da sociedade comercial, construindo um império com a inovação dos grandes magazines, na Paris da segunda metade do século XIX, gênese da Samaritaine e das Galeries Lafayette da atualidade.
Na constituição desse corpo, constatamos uma intenção clara de Zola de contrapor, in absentia, os romances Le ventre de Paris, cujo ambiente, como sabemos é o mercado de Les Halles, e Au Bonheur des Dames, revelando um novo espaço, numa Paris que se transformou sob Napoleão III, aos golpes de marretas, martelos, pás e picaretas. Assim como a cidade se apresenta sob a nova roupagem dos grandes boulevares arborizados, com as árvores dos bosques de Boulogne e de Vincennes, no bota-abaixo operado na administração do Barão Haussmann, é preciso que ela se modernize, que apresente uma nova fachada para o seu comércio. Nada do comércio pequeno, tacanho, acanhado. Agora, assoma a figura ciclópica das grandes lojas de departamento, onde tudo se encontra para a maior comodidade e maior gasto dos clientes, sobretudo das clientes, tendo em vista os arranjos sedutores, que se fazem nas intermináveis alas dos produtos oferecidos.
Les Halles é onde se come; Au Bonheur des Dames, onde se veste. O comer é coletivo, daí a impessoalidade do grande mercado, que ressalta como personagem, ainda que se destaque a figura de Lisa, importante por causa da filha Pauline, que reaparecerá como heroína de La joie de vivre. Do grande comércio de alimento e flores vem a sinestesia forte dos cheiros intensos e das cores vivas, que impacta o leitor. O vestir é individual, o que resulta no personalismo de Octave Mouret, confundindo-se com o próprio empreendimento de que ele é o proprietário, sempre lutando pela harmonização e equilíbrio, que se constata, por exemplo, no cromatismo do branco e do vermelho. Octave Mouret é o Au Bonheur des Dames.
Entre máquina azeitada e monstro devorador (Capítulo I), o grande magazine vai sendo construído por Octave Mouret, à frente 24 horas por dia do seu negócio, impelido pelo gênio da mecânica administrativa (Il avait le génie de la mécanique administrative, Capítulo II), jamais parando de pensar como expandir o seu comércio; expandi-lo como armadilha para as mulheres, de modo a devorá-las por sua vaidade (Capítulo III); expandi-lo como templo para o culto do seu corpo (temple élevé au culte du corps de la femme, Capítulo X).
Paris se transforma no visual de seu traçado, de suas fachadas, no comércio e nas relações sociais. A modernização, no entanto, tem seus efeitos colaterais indesejáveis, trazendo dissabores aos que não podem suportar a concorrência e teimam em afrontar o monstro devorador, como Baudu, dono do Au Viel Elbeuf, e o teimoso Bourras, fabricante de guarda-chuvas. O pequeno negócio não só capitula, mas sucumbe diante das garras afiadas e das fauces vorazes do grande magazine. A pedra e o cimento dão lugar ao ferro, como uma metáfora do mais resistente e duradouro, que vem para ficar (Capítulo IX):
"C’était la cathédrale du commerce, moderne, solide et légère, faite pour un peuple de clientes. […] Un monde poussait là, dans la vie sonore des hauts nefs métalliques”
Era a catedral do comércio, moderna, sólida, leve, feita para uma
população de clientes mulheres. [...] Um mundo crescia ali, na vida sonora das altas naves metálicas.
A modernização requer gastos com publicidade, como grande poder incentivador das vendas (la grande puissance était surtout la publicité, Capítulo IX), que Octave Mouret faz de maneira inteligente, através de anúncios, de catálogos e de balões de gás vermelhos – quarenta mil balões, em um dos momentos! –, que o magazine oferece às crianças. Moderno, não? A presença da publicidade, feita de modo sistemático, para dar impulso ao comércio, é algo novo no romance. Émile Zola a utiliza com a consciência de quem foi chefe de publicidade na editora Hachette. A comida não precisa de propaganda, é algo essencial à vida. Moda é acessório, necessitando de renovação para ser consumida.
O reclame (réclame) é apenas um dos muitos ingredientes das modernas técnicas de acúmulo de capital, proveniente de uma burguesia produtora de bens, chamada de “aristocracia do trabalho” (aristocratie du travail, Capítulo XI), cujo símbolo é Mouret, e vista com desdém e ironia pela real e improdutiva aristocracia: novas técnicas de venda, como a abordagem ao cliente; variedade e sortimento de estoque (chega-se à cifra de dezesseis milhões de mercadorias, que incluía uma ala à venda de livros, no momento de um balanço do magazine, no Capítulo X), instalações amplas, claras e sedutoras, exposição das mercadorias aos olhos da clientela, preço mais baixo para eliminar a concorrência, venda em grande quantidade, alta rotatividade na circulação de dinheiro e de mercadorias, mimos aos clientes e aos seus filhos. Eis o novo mundo do capital, o mundo moderno do comércio seduzindo Paris, que se torna pequena diante dele – “Paris s’étendait, mais un Paris rapetissé, mangé par le monstre” (Paris se estendia, mas uma Paris, tornada pequena, comida pelo monstro, Capítulo XIV).
A visão feérica do Au Bonheur des Dames (C’est féerique!, no dizer de Madame Marty, uma das clientes, Capítulo IX), com a população, um mundo, uma multidão em ondas (Capítulo IX), se atropelando e se matando para ter acesso a essa catedral do consumo, se contrapõe ao declínio do pequeno comércio, na sua sonolência da ruína (somnolence de la ruine, Capítulo VIII). Com seus 3.045 empregados, tomando o espaço de todo um quarteirão, o elegante magazine é o cartão postal dessa nova Paris, que, difícil de domar, se entregava, em um beijo, ao mais ousado – Octave Mouret (Paris se donnant dans un baiser au plus hardi, Capítulo II).