O calendarium eclesiástico luterano reúne diversos eventos litúrgicos dentre os quais o nascimento do Redentor é reiterado, relembrado e simbolicamente revivido. E vê-se na liturgia luterana que vida e morte são parte de um mesmo propósito: os ciclos do tempo calendarius são distintos e interligados, pois a vida a partir do nascimento de Jesus só se faz completa com sua morte de cruz, por condenação do pecar de muitos; foi por isto que ele veio ao mundo! E essa consciência é praticada em música, inclusive pelo próprio Martin Luther que, além de teólogo, foi também compositor.
Seguindo essa tradição e partindo dessa praxe musical, mas, adequando-a ao estilo próprio do tempo e da conjuntura estética norte-americana, os compositores estadunidenses unem-se aos propósitos da música funcional sacra para escreverem cantatas sob os mais diversos temas litúrgicos, e muitas destas obras aproximam-se do gênero do musical, bem comum do século passado em países de língua inglesa. Aliás, esse gênero é um derivativo das operetas, pode incluir também dança, representação e outros recursos em que os musicais mais famosos se tornam emblemas da própria cultura norte-americana.
O Musical sacro Gabriel's Song , feito em conjunto pelo doutor David Horton e Michael Frazier, não é propriamente uma Cantata que cabe apenas numa data de fim de ano. Por se tratar da vida inteira de Cristo na terra, ela pode ser apresentada a qualquer tempo em templos, num sentido de culto musical encenado, bem como, enquanto próximo do gênero do musical, fora do ambiente eclesiástico convencional, como o foi em sua estreia, feita no outono de 1994, no Dixon Center, pela Lee College, em Cleveland.
Para nossos padrões atuais, a gravação de uma das récitas de estreia nos pode parecer precária, mas é preciso ter em mente os recursos tecnológicos e didáticos de que a Lee University dispunha, como a possibilidade de gravar áudio e vídeo separadamente, com várias câmeras captando panorâmicas e close-ups e o uso de microfones de lapela. Assíncronas cenas entre áudio e vídeo podem-nos pesar, ou breves cortes devido a modelo VHS de distribuição, além de lapsos dos camera-men que perdem o foco em algumas ocasiões, mas sua mensagem no todo não se prejudica quando depreendida nesse contexto.
A montagem original, com público presente, teve encenação, alguns passos coreografados, bandeiras e estandartes ao fim, e o coro que permeia toda a obra, seguindo os moldes luteranos do discurso de oratórios e cantatas. O roteiro segue-se em cronologia estritamente bíblica, mas a narrativa é contada (ou cantada!) a partir da invenção de uma perspectiva angélica: o anjo Gabriel, encarnado, visível, e com figurino antropomorficamente heroico, narra e entoa toda a trajetória desde a promessa do nascimento até a assunção aos céus de Cristo ressurreto dentre os mortos. E, para que entendamos bem essa lógica narrativa, é bom que nos voltemos justamente para esse personagem principal.
No hebraico moderno Gavri'el, ou em latim, Gabrielus, significa "homem forte de Deus", e por isso o tenor Steven Wright usa um figurino único com brazão em bronze reluzente em armadura prateada, panos leves e esvoaçantes de um branco cintilante, costurados nas laterais em duas partes meio abertas perfazendo as asas; e manto preso com cordas, cruzado em diagonal por sobre a couraça: um vestido entre o pictórico celestial e um tradicional traje romano. Além de, num sentido antropomórfico, alusão ao símbolo greco-romano do ramo de oliveira ou coroa de louros na fronte, em forma de tiara trançada e resplandecente: o triunfo apoteótico de um general vitorioso era representado pelo seu retorno e entrada à cidade com sua fronte abençoada por essa láurea, assim como é a entrada ao palco da primeira aparição de Gabriel, envolto em fumaça. Todo o seu cabelo em brilhantina e vestimenta repleta de sutil purpurina, com rosto maquiado para a reflexão da iluminação geral: caracterização a cargo da figurinista Chyela Stewart e do maquiador Terry Davis. A primeira referência nominal registrada na Bíblia a Gavri'el se encontra em Daniel, capítulo 8, a partir do versículo 15, quando este, após uma de suas visões noturnas, procurando-a entender, se vê diante de uma visão de um ser com aparência de homem. E uma voz de homem de entre as margens do rio Ulai grita-lhe em ordem para que o anjo dê a entender a Daniel sobre suas visões recentes. Na armadura peitoral da caracterização do Gabriel de Chyela Stewart, vê-se uma alusão a Daniel, salvo dos leões: o brasão numa efígie dúbia, entre ser humano e leão, com asas.
O coro representa a legião celestial a ladear o Anjo-narrador; eles entoam louvores, e permeiam ao longo de toda a cantata encenada contrapondo-se aos solistas, reiterando frases ou dando realce à orquestração e às modulações. Os anjos, também com cabelos brilhantes, em vestes alvas com cintas em seda brilhosa prateada ou cordões doirados, posicionados em arquibancadas equidistantes do centro do palco, num plano superior com fundo azul. Véus e cortinados em carmesin, doirado e cetim branco, entremeando os dois grupos, atados e suspensos por pequeninas colunas em estilos jônico e toscano, representando nuvens em que o coro está a anunciar ao mundo a história de vida daquele que é o Messias e o Cordeiro de Deus.
O jovem coro misto permanece a mirar os personagens humanos, mas Gabriel é o único que, como narrador, anda por todo o palco, sai do plano angélico para o plano humano, mais abaixo, e contracena com os demais cantores; ao mesmo tempo assiste o desenrolar da trama, e por vezes, se direciona diretamente à plateia, tanto como aos demais anjos em coro, ao falar.
As partes principais da cantata são:
1. Abertura (coro celestial) – In the beginning when God created the heavens and the earth…;
2. Hino de bravura e louvor do coro celestial – Glory to God in the highest!;
3. Aparição de Gabriel que canta a encarnação do Verbo - In The Beginning was The Word;
4. Recitativo da anunciação de João ao sacerdote, seu pai, Zacarias – Fear not Zechariah!;
5. Diálogo entre Gabriel (anunciação de Jesus) e Maria em forma de recitativo arioso – Fear not Mary! – How can this be?;
6. Ária (solo de Maria e acompanhamento do coro angélico) – Behold the handmaid of the Lord, let it be according unto thy word;
7. Duo de Elizabeth e Maria – My soul doth magnify the Lord;
8. Anunciação de Gabriel, em sonho, a José, sobre Jesus (solo de José e louvor coral, tema central da cantata) – His name is Jesus;
9. Narração da gestação e diálogo sobre nascimento do Cristo (cena com trilha instrumental seguida de hino coral) – O little town of Bethlehem;
10. Anunciação de Gabriel aos pastores do estábulo para adorarem ao Emanuel (Canção do coro celestial) – Glory to God!;
11. A estrela do Messias no oriente trazendo os magos ao recém-nascido Rei dos judeus (Ária de Gabriel, com coro dos demais anjos) – O Holly Night;
12. Trio duplo dos pastores e dos magos do oriente (com realce angélico) – We have found him;
13. A infância de Cristo (narração de Gabriel) – trilha instrumental (com material do hino coral Glory to God);
14. Festim hebreu com canto e danças – Thou shalt have joy and gladness;
15. Narração sobre batismo de Jesus, e diálogos falados com recitativo do tentador a Jesus já adulto – If you are the ‘Son of God’;
16. Cena coreografada: Jesus expulsa a satanás e eis que anjos o servem – trilha instrumental com o hino Holy, Holy, Holy, Lord God Almighty (do compositor britânico John Bacchus Dykes);
17. Jesus opera milagres e suscita o louvor de centuriões e daqueles que crêem (Trio e coro) – When He speaks;
18. Narração sobre o propósito da vinda de Jesus (com fundo musical) e solo de Gabriel: Behold the Lamb!;
19. A consumação na cruz (cena dramática de Cristo) – com efeitos sonoros;
20. Narração e diálogo: Ao terceiro dia o túmulo vazio... – trilha instrumental com recapitulação temática;
21. Ele vive! (Solo de Gabriel com coro angélico) – He is alive!;
22. Narração final triunfante e hino glorioso (Gabriel e coro celestial) com aparição das bandeiras de Cristo e danças de bendição – Blessed be the glory and power;
23. Apoteose de assunção e entronização (coro celestial) – His name is Jesus!.
A direção de palco ficou a cargo de Jim Veenstra e Danna Amerman; com cenários bem singelos, mas simbólicos e funcionais, assinados por Steven Stark and Lisa Olson. Um dos pontos fracos dessa montagem original é, apesar das características didáticas, o fato de o competentíssimo arranjo, (com a possível orquestração de Lari Goss) ter sido realizado em forma de playback quando, pela riqueza expressiva e criatividade, deveria ser com orquestra ao vivo. Dos prováveis motivos para a não execução em cena seria o orçamento e o espaço físico no Dixon Center. Outro ponto desinteressante e pobre de expressividade é o uso de sintetizadores eletrônicos na instrumentação, quando os instrumentos acústicos são muito mais ricos em timbres e efeitos. Isto é explicado pela cultura evangélica do século passado por toda a América do Norte em que se disseminou um uso fajuto da tecnologia em si mesma, ou como mera novidade prática, em detrimento de instrumentos mais caros, melhores certamente, mas que exigem um domínio e proficuidade bem superiores aos dos tecladistas.
Na verdade, Gabriel's Song, enquanto criação musical, tem um valor que nem mesmo essa cultura desprezível das igrejas ou, como no caso, das faculdades, soube reconhecer. Os próprios criadores que estão sob esse contexto, são vítimas de concepção que mascara a densidade artística da obra. Exemplo categórico é o recitativo de satanás, com um som sintetizado feio, tentando aludir à feiura diabólica: pieguice da sonoridade (do que seria próxima de um cravo ou espineta) que, indubitavelmente – como a própria literatura musical do século XIX tem tão criativamente expressados os sons do grotesco e do feio – se alcançaria de forma artística com os instrumentos acústicos reais.
Também, em face da orquestração bem feita, os sons tanto pré-gravados em playback, quanto esses sintetizados, são pobres e pouco inteligentes porque a dimensão do bom uso na instrumentação da maior parte do Musical é de instrumentos acústicos – ou pelo menos os emula – e são bem tocados. Mas aquela época (e ainda hoje em muitos lugares e circunstâncias...) privilegiava o elétrico e eletrônico em detrimento do acústico como um todo. Isto se verifica em instrumentos como o baixo elétrico e a guitarra que, associados ao uso de microfones em geral e à amplificação dos playbacks, com caixas de retorno para solistas, dão um caráter de montagem coeso embora com essas consequências prejudiciais à música em si que pode ser realizada bem melhor, se repensados estes aspectos.
A abertura é modal, com caráter épico, feita para impressionar a partir da articulação do texto que trata dos primeiros versículos do primeiro livro de Moisés. A música começa um tanto o quanto sem metro, em alusão à terra que estava sem forma e era vazia. O introito do coro é uma chamada para a adoração apreciativa de toda a obra: adoração do espectador enquanto ouvinte crente da mensagem, e apreciação enquanto gênero musical. A pouco e pouco se adensa a rítmica orquestral caminhando para a palavra de ordem divina com a criação da luz, no ponto mais agudo para o coral até então. Após breve pausa para aplausos da plateia, surge um compasso quaternário simples, bem marcado, de pulso marcial, e o canto do coro celestial é, com toda a exaltação, sobre verso cantado três vezes, em referência ao Deus triúno: Glória a Deus nas Alturas! .
O cântico segue baseado no livro dos Salmos, principalmente no que é mais referencial à arte musical, o Salmo 33; os versículos primeiro e sexto são a dimensão exata desse regozijo musical depreendido pelo ritmo e divisão coral (tenores dobrando os sopranos que se reforçam como vozes mais agudas de ambos os gêneros a entoar a melodia principal) além da base própria do texto:
“Exultai, ó justos, no Senhor! Aos retos fica bem louvá-lo. [...] Os céus por sua palavra se fizeram, e, pelo sopro de sua boca, o exército deles.”
As modulações são tratadas como forma de intensificar o louvor à glória do Altíssimo, em cores distintas na dedicação à Trindade, em contraposição aos trechos de Salmos em igual melodia modal em sentido descendente. É interessantíssimo observar que os criadores pensaram muito bem sobre a forma desse coral, no que tange à representação da triunidade: há três dentro de três, assim a repetição é tanto da expressão “nas alturas” quanto da frase inteira, e esta feita em tonalidades que vão sempre em sentido ascendente, rumo ao sentido de uno, na concepção teocêntrica. Desde a Idade Média, o Ocidente registra essa ideia e a prefigura em diversos diagramas. Como a Música sempre foi parte desse pensamento, inerente do fazer filosófico e eclesial (Trivium e Quadrivium), é possível atinar para essa relação posta tanto em sentido geométrico, quanto teológico ou, como no caso, musical. Portanto, o doutor Horton e Frazier são mais ainda felizes quando de sua obra se perscruta e observa-se essa nítida consciência simbólica que já também havia nas obras-chave da arte luterana. Eis uma representação gráfica antiga do símbolo dentro do símbolo, assim como a visão das quatro rodas de Ezequiel, que se aproxima ou inspira o raciocínio composicional:
Trompetes e trompas respondem ao coro com pompa e ritmo espirituoso e ataca-se a entrada de Gabriel com insistente e rápido desenho de acompanhamento nas cordas com arco. O ‘homem forte de Deus’ surge dentre fumaça de gelo seco a cantar a encarnação do Verbo que está descrita no Evangelho segundo João. Aí Gabriel já encerra na obra o início, o meio e o fim (de novo o sentido triúno) da própria Bíblia. Ao fim da canção apoteótica, Gabriel narra as preparações para o nascimento do Emanuel, e outra representação musical da Trindade, com o toque do instrumento judaico sagrado Shofar após a referência ao profeta Malaquias, quando este proclamou “Eis que eu envio o meu mensageiro diante de mim; de repente, virá ao seu templo o Senhor, a quem vós buscais, o Anjo da Aliança, a quem vós desejais; eis que ele vem, diz o Senhor dos Exércitos.” O Shofar ataca em intervalo de “Quinta-Justa” — não à toa é essa designação vinda desde muito tempo atrás!... — ascendente (rumo aos céus) em três vezes.
Na anunciação para Zacarias, Gabriel entoa um cântico de Júbilo (Lucas 1:14) para que o sacerdote regozije-se na presença do Senhor, pois ele e sua mulher foram achados irrepreensivelmente em todos os preceitos e mandamentos do Senhor e a esterilidade de Isabel seria curada para o nascimento daquele que viria a ser o precursor e apregoador do ‘Deus Conosco’. A Bíblia também fala do ‘Cântico de Zacarias’, a que os compositores preferiram não incluir; mas, puseram em cena a desconfiança do velho sacerdote, cuja mulher também já era avançada em dias, ficando mudo como punição dada pelo Anjo para que este cresse sem titubeios na Palavra do Mensageiro do Altíssimo. A música do trecho que segue é, como em outros trechos, pueril, embora cumpra com sua função narrativa.
Também três são as referências a compositores outros, hinos já bem conhecidos e que são incorporados à Cantata – procedimento bem comum nas obras luteranas: O hino “Santo, Santo, Santo, Deus Onipotente” do compositor inglês John Bacchus Dykes; e os hinos natalinos “Pequena Vila de Belém” de Lewis Henry Redner; e “Cantique de Noël” de Adolph Adam. Estes dois últimos, são cantados, e o hino de Adolph Adam é adaptado, num texto em que o Anjo principal valoriza o nascimento dentro do contexto narrativo.
Erroneamente a versão brasileira, editada pela ‘Benção Music’, com a adaptação para o português do Brasil de Carlos Alberto Silva, dá um sentido unicamente natalino a este musical. O próprio enredo contradita esta versão que simplesmente corta tudo o que não é relativo ao nascimento de Cristo; o Anjo Gabriel, após a cena do nascimento do Salvador, diz (sob trilha heroica com o tema de abertura):
“Para muitos este seria o fim da estória, o bebezinho a dormir numa manjedoura, uma bela e pitoresca ideia, mas a História não termina aqui, em verdade, está só a começar; há muito mais coisas que tenho a vos dizer...”.
A trindade encarnada é representada em três fases da vida de Jesus: ao nascer, e a direção do espetáculo teve o cuidado de trazer ao palco um bebê real; na infância, com um ator-mirim em meio aos doutores, no sinédrio; e, Jesus adulto, sendo tentado, e, ao fim, crucificado, e ressurreto, sentando-se no Trono celeste. Este personagem, não canta, e em si tem pouquíssimas falas. Mas, não se pode deixar de mencionar a expressividade da cena final: todos diante do Trono do Redentor, prostrados, a adorar àquele que é o Rei dos reis e Senhor dos senhores. A música é a energia de convergência da ação teatral. Como tema central, “Seu nome é Jesus” conta com a técnica de aumentação, dobrando o tempo de frases, ao final, e ampliando a apoteose que extasia a todos até ao fim, quando baixa-se uma fina cortina, como se fora uma nuvem de glória e esplendor.
Seja pelo recitativo arioso de Maria, quando esta recebe a missão de gerar, por Obra e Graça do Espírito Santo, ao Maravilhoso Conselheiro; seja por sua ária ou no duo com Isabel; ou ainda pelo trio duplo de louvor ao Deus Forte, recém-nascido, e todas as partes corais, esta grande Cantata é e sempre será um referencial da música eclesial. Quiçá as igrejas brasileiras, em todas as suas diversas denominações, entendam o valor desta obra e a façam na íntegra, tanto em língua original com legendas, quanto numa completa e boa versão brasileira. Mas, mais do que isto: que esta mensagem – que tem em Jesus a chave hermenêutica – seja também cantada por compositores nacionais, e que estes sejam reconhecidos e valorizados pelas lideranças cristãs como ministros de música em pleno exercício profissional, pelo qual mereçam ser remunerados e cujas obras tenham interpretações dignas.
O doutor Horton faleceu trabalhando, justamente quando completara trinta e seis anos de atuação na Lee University; estando ele numa de suas muitas viagens à frente de coros, em oito de maio de 2006, de um ataque cardíaco, em Nassau, nas Bahamas, aos sessenta e quatro anos. Que sua trajetória de carreira musical seja exemplo para que universidades em todo o mundo saibam o valor de um compositor e aprendam a tratar ao Artista, em todas as peculiaridades e especialidades que esse nobre exercício tem na e pela sociedade.