O cenário é Anfiteatro Flávio. O ano é 80 depois de Cristo. O César do momento é Tito, que tinha o mesmo nome do pai, o imperador Vespasiano — Titus Flavius Vespasianus. O evento é a inauguração do anfiteatro que leva o nome da sua Gens, sua família. Na arena, uma cena clássica de Venatio ad bestias — a caça aos animais —, entretenimento que fazia parte das munĕra, os jogos gladiatórios dados pelo imperador. O momento era solene, para gáudio da população e dos estrangeiros, que acorreram a Roma, para ver a inauguração da mais nova maravilha do mundo antigo. O poeta é Marcus Valerius Martialis, o Marcial, responsável pelo único documento, escrito na ocasião das festas da entrega do teatro à população romana.
O nome Coliseu, como é conhecido hoje o Amphitheātrum Flauium, vem desde o século VIII de nossa era e foi dado não pela magnificência da construção, mas por causa da proximidade da estátua colossal de Nero no local. Ao lado do Coliseu, uma grande estrutura retangular de 17,60 x 14,75 m, que ainda se vê hoje, sustentava a gigantesca estátua. A obra foi encomendada a um escultor grego, Zenodoros, tendo como modelo o Colosso de Rhodes, simulacro do Sol, obra do século III a. C., da autoria de Chares de Lindos. Zenodoros supera Chares, com uma estátua de 35 metros, três a mais do que o o monumento que guardava a entrada do porto de Rhodes. Contando com a base, a estátua de Nero ficava quase da altura do anfiteatro, 50 metros, sendo a maior obra em bronze do gênero, já erigida na antiguidade. Ali estava representado o imperador identificado como Hélios, o deus Sol. Vespasiano, em sua gestão, substituiu a cabeça de Nero pela do Sol, ornada com sete raios e a fez transportar pela Via Sacra. O imperador Adriano colocou-a à entrada o Anfiteatro Flávio e dela veio o nome de Coliseu (no latim medieval é Colisseum ou Colyseus, uma corruptela de Colosseus ou Coloss[i]aeus, colossal, estátua colossal, derivado de Colossus, -i, colosso, estátua). Depois, o próprio Adriano a retira do local, para que ali seja construído o templo de Vênus e Roma.
Conforme vimos, existe um conjunto de personagens e fatores, sem os quais é impossível falar do Coliseu. Nesse conjunto, é importante citar a construção da Domus Aurea por Nero, em cujo átrio se erigia a estátua. Os gladiadores e as munĕra, há muito existentes na tradição romana, são um forte motivo para a construção do monumento, concentrando os jogos gladiatórios num local apropriado. Já o poeta Marco Valério Marcial é decisivo para a sua divulgação, escrevendo e publicando, no ano 80 de nossa era o Livro dos Espetáculos — Liber de Spectaculis ou Liber Spectaculorum.
O objetivo do Livro dos Espetáculos era a celebração do Amphitheatrum Flauium, cuja construção foi iniciada pelo imperador Vespasiano (69-79), mas tendo sido inaugurado pelo seu filho, o imperador Tito (79-81), no ano 80. Vindo da Espanha, Marcial chega a Roma em 64, em pleno principado de Nero (54-68), vivendo a vida de cliente (cliens), o poeta que depende de um patrono, de quem recebe a ajuda monetária (sportula) ou outros bens que lhe permitam existir.
Tendo vivido durante algum tempo sob a proteção de Sêneca e na companhia do poeta Lucano, Marcial constata o momento de tirania que Roma vive sob Nero, cujo auge é a construção da Domus Aurea, a suntuosa mansão que ele construiu com o dinheiro dos impostos e em área confiscada ao povo, depois do grande incêndio de 64. Com a chegada de Vespasiano ao poder, uma das primeiras atitudes para apagar a imagem de Nero é a devolução do espaço público ao povo, com a construção do anfiteatro, numa parte do terreno em que foi erguida a monumental residência.
O sucesso da inauguração do anfiteatro é grande, trazendo gente de todas as partes do mundo, do agricultor da Trácia ao africano do Egito mais ao sul (atual Sudão); povos dos litorais distantes a oeste, tocados pelas ondas do mar, marcando a diversidade de público. Todos das mais variadas línguas, ali estiveram para ouvir uma única voz, a do imperador Tito César. Roma se faz ainda mais cosmopolita com a multidão que recebe, sob as ordens e os auspícios do imperador, cujo título de Pai da Pátria aparece em moeda cunhada nos anos 80 , apresentando na face oposta o anfiteatro.
O poeta Marcial celebra essa atitude compondo 33 epigramas, de que destacaremos os dois primeiros do Livro dos Espetáculos, em tradução nossa:
Epigrama I
Que a bárbara Mênfis silencie os prodígios das pirâmides, e nem o labor assírio se jacte da Babilônia; e nem os efeminados Jônios sejam louvados por causa do templo da Trívia, que o altar guarnecido de chifres dissimule Delos; e nem no vazio ar os Mausoléus suspensos os Cários levem aos astros com louvores imoderados. Todo labor cede ao anfiteatro Cesáreo, a fama falará de uma só obra em lugar de todas juntas.
Que a bárbara Mênfis silencie os prodígios das pirâmides, e nem o labor assírio se jacte da Babilônia; e nem os efeminados Jônios sejam louvados por causa do templo da Trívia, que o altar guarnecido de chifres dissimule Delos; e nem no vazio ar os Mausoléus suspensos os Cários levem aos astros com louvores imoderados. Todo labor cede ao anfiteatro Cesáreo, a fama falará de uma só obra em lugar de todas juntas.
O Anfiteatro Flávio excede e excele. Não só a sua estrutura é magnífica, rivalizando com as ditas maravilhas do mundo antigo, como ele excele tendo em vista a sua função pública. Ele não foi construído para abrigar ou celebrar uma pessoa, mas para celebrar a volta do espaço público e com uma obra destinado ao público. Assim, ao ser comparado com as pirâmides, o mausoléu de Halicarnasso, os jardins da Babilônia, o anfiteatro assume uma característica de obra com função pública, em contraposição à função privada dessas maravilhas. O que não deixa de lembrar o espaço anterior em que se encontra o anfiteatro, parte da Domus Aurea de Nero, espaço privado. O público, portanto, confronta o privado, em que a obra para exaltação ou usufruto de uma única pessoa, passa a ser uma obra de que todos podem usufruir. O Anfiteatro Flávio é, portanto, obra única (opus unum), capaz de suplantar a maravilha das demais.
Por outro lado, define-se a natureza da obra como viril, cujo espaço será destinado, sobretudo, à luta entre gladiadores, as munĕra.
Epigrama II
Aqui onde o colosso sidéreo vê mais próximos os astros e em meio à via os elevados cenários crescem, os átrios odientos do fero tirano cintilavam e já, em toda a urbe, uma única casa se erigia; aqui onde do conspícuo Anfiteatro a venerável massa se erige, existiam os lagos de Nero; aqui onde admiramos as termas, dons mais rápidos, um campo soberbo arrancara os tetos aos miseráveis; onde o pórtico Cláudia estende suas sombras difusas, estava a última parte do palácio extinto. Roma foi devolvida a si mesma, e, sendo tu governante, César, são do povo as delícias que foram do soberano.
Aqui onde o colosso sidéreo vê mais próximos os astros e em meio à via os elevados cenários crescem, os átrios odientos do fero tirano cintilavam e já, em toda a urbe, uma única casa se erigia; aqui onde do conspícuo Anfiteatro a venerável massa se erige, existiam os lagos de Nero; aqui onde admiramos as termas, dons mais rápidos, um campo soberbo arrancara os tetos aos miseráveis; onde o pórtico Cláudia estende suas sombras difusas, estava a última parte do palácio extinto. Roma foi devolvida a si mesma, e, sendo tu governante, César, são do povo as delícias que foram do soberano.
À medida que o Coliseu vai sendo construído, os andaimes vão compondo o cenário, em meio à rua. Não só os átrios são odientos mas o rei também, no caso Nero. A massa enorme do teatro era onde existiam os lagos de Nero (stagna Neronis), para fazer o contraste do absurdo. O Epigrama II reforça a construção do anfiteatro como espaço público, ao mesmo tempo em que procura apagar as lembranças do déspota Nero e da exorbitância da Domus Aurea. A ironia, no entanto, não perdoa. A Gens Flauiana tentou apagar a imagem de Nero, com a construção do teatro, mas o tempo acabou por consagrar o nome ligado à estátua colossal do cruel imperador.
Voltemos à cena de caça, de que falamos no início. A cena específica é a caça a uma porca selvagem grávida (são três epigramas seguidos, em dísticos elegíacos, sobre o mesmo assunto). Morta por uma lança, da ferida de sua barriga saem os filhotes. Para o poeta Marcial, a mesma deusa que protege os partos — Lucina — aparece na sua forma cruel de caçadora — Diana. O essencial é que, na visão entre emocionada e indignada do poeta, a mãe morre para dar à luz os filhotes, assim como Sêmele, ao morrer, tem Baco retirado de seu ventre por Zeus. Há inegavelmente uma fina ironia do poeta, fruto da sua indignação, na aproximação da banalidade da morte da porca grávida com a morte de Sêmele para o nascimento de uma divindade, o que faz do Epigrama XII um poema representativo dos milhares de animais mortos, cerca de 5.000, de várias espécies — porcos selvagens, antílopes, javalis, ursos, touros, rinocerontes, leões, tigres, búfalos —, por ocasião dos festejos de inauguração, que duraram um ano. Vejamos o poema, em tradução nossa, em heptassílabos duplos:
Epigrama XII
Em meio às cruéis provas da Cesárea Diana ágil hasta traspassara uma grávida suína, uma cria saltou fora da ferida da mãe mísera. Ó Lucina tão feroz, isto foi o ter parido? golpeada pelos dardos, desejara ela morrer, para que triste caminho fosse aberto aos filhotes. Há quem negue haver Baco vindo de morte materna?
Em meio às cruéis provas da Cesárea Diana ágil hasta traspassara uma grávida suína, uma cria saltou fora da ferida da mãe mísera. Ó Lucina tão feroz, isto foi o ter parido? golpeada pelos dardos, desejara ela morrer, para que triste caminho fosse aberto aos filhotes. Há quem negue haver Baco vindo de morte materna?
O poeta, que parecia prever a inexistência de uma imagem sua no futuro, tratou de fazer a sua imagem como epigramista, num poema em hendecassílabos falecianos, na abertura do Livro I dos Epigramas:
Epigramma I, Liber I
Hīc ēst quēm lĕgĭs īllĕ, quēm rĕquīrĭs, tōtō nōtŭs ĭn ōrbĕ Mārtĭālĭs ārgūtīs ĕpĭgrāmmătōn lĭbēllīs: cuī, lēctōr stŭdĭōsĕ, quōd dĕdīstī uīuēntī dĕcŭs ātquĕ sēntĭēntī, rārī pōst cĭnĕrēs hăbēnt pŏētǣ.
Hīc ēst quēm lĕgĭs īllĕ, quēm rĕquīrĭs, tōtō nōtŭs ĭn ōrbĕ Mārtĭālĭs ārgūtīs ĕpĭgrāmmătōn lĭbēllīs: cuī, lēctōr stŭdĭōsĕ, quōd dĕdīstī uīuēntī dĕcŭs ātquĕ sēntĭēntī, rārī pōst cĭnĕrēs hăbēnt pŏētǣ.
Epigrama I, Livro I
Este que lês, que procuras, é aquele Marcial, conhecido em todo o orbe pelos seus engenhosos livrinhos de epigramas: a quem concedeste, leitor dedicado, ainda vivendo e sentindo, uma honra que possuem raros poetas após as cinzas.
Este que lês, que procuras, é aquele Marcial, conhecido em todo o orbe pelos seus engenhosos livrinhos de epigramas: a quem concedeste, leitor dedicado, ainda vivendo e sentindo, uma honra que possuem raros poetas após as cinzas.
Não só como poeta conhecido e celebrado ainda em vida pelos sua jocosidade, por seus epigramas incisivos e ferinos, Marcial permanece também como o poeta que testemunhou a construção e a inauguração do Anfiteatro Flávio e das atrocidades ali cometidas, em nome da diversão. Falo mais dos animais do que dos gladiadores. Ainda que muitos não tivessem escolha — havia aqueles que se submetiam à gladiatura por vontade própria —, os gladiadores eram profissionais adestrados na arte de matar. Os animais só tinham o instinto para se defender.