O Espírito Santo sempre foi um Estado sui generis. Visto como Estado de “passagem” para o Nordeste e de parada para abastecimento para os turistas oriundos dos grandes Estados da região Sudeste, em viagem para o litoral baiano. Um Estado quase sem sotaque, um misto de mineiro desconfiado com a malemolência baiana.
Essa característica de relativo isolamento tem razões históricas, e fez com que todos os movimentos literários que correram o mundo, principalmente a partir do século XIX, tardassem por aqui chegar e, quando chegavam, tardassem em partir.
Para um autor capixaba, a divulgação de seus textos, de suas idéias, sempre passou pela necessidade de mudança do endereço de residência. E assim o fizeram, entre outros, os escritores capixabas Rubem Braga e José Carlos Oliveira.
Hoje, embora ainda de maneira muito incipiente, alguns autores conseguem ter acesso ao mercado editorial: um exemplo é o excelente romance de Reinaldo Santos Neves, A longa história, publicado pela Bertrand do Brasil.
Mas as oportunidades continuam muito poucas.
De modo que a ampla função que estabelece as hipermídias resulte em expoente para a divulgação da cultura capixaba.
Pensando em mostrar algo além da já famosa (e saborosa) moqueca capixaba e do tão comentado petróleo, é que trazemos um pouco da poesia atualmente produzidas no Espírito Santo.
Adendo: Sobre a identidade cultural capixaba recomendo o ensaio produzido por Adilson Vilaça.
.:: BERREDO DE MENEZES ::.
POEMA XIII
Agora,
na tarde dos homens.
onde resisto
ao velho som das formas,
o espaço é cor
e tempo em meu vazio;
e as flores,
acesas,
o meu ludibrio;
e o suicídio das frutas,
neste chão que eu piso como uma fera,
a festa
de minha morte.
Sou, em suma,
um vôo cego
e feliz.
AUTO-RETRATO POÉTICO
Doido é quem sabe ver, além do arco-íris,
as cores do silêncio ouvindo o escuro.
Doido é não ter o luar como suporte
e acreditar-se sol no olhar dos anjos
Doido é negar silêncio ao pôr-do-sol,
tocando sinos de quem ouve a aurora.
Doido é inventar a luz do esquecimento
como asas de flanar a escuridão.
Doido é remanejar, na dor do escuro,
silêncios que as lembranças já não sofrem.
Doido é enfeitar de rosas uma praia,
pensando perfumar a dor da espuma.
Doido é guardar espinhos, de lembrança,
na esperança de ouvir a dor das rosas.
Doido é se perfumar em brisa surda,
esperando embriagar a solidão.
Doido é esconder-se ao luar, numa jangada,
perdendo o leme de amansar os ventos.
Doido é fingir que a dor do pôr-do-sol
é anestesiada à luz dos epitáfios.
Doido é esse canto que faz pouso em mim
como sobra semântica de um eco.
Doido é saber ouvir o luar nas pedras
e fiar com surdo brilho a luz do orvalho.
Doido é beber o orvalho de uma rosa,
tentando ouvir a dor que há nos espinhos.
Doido é sofrer o escuro como um grito,
sem ter onde chorar o seu silêncio.
Ferdinand Berredo de Menezes (1929—2015)
Nasceu em Caxias, no Estado do Maranhão. Viveu em Vitória-ES, onde fez sua carreira como poeta, contista, advogado, professor universitário e político. Vencedor de vários prêmios Nacionais e Internacionais. Ocupou a cadeira nº 01 da Academia Espírito-santense de Letras. Possui mais de 20 livros publicados.
Nasceu em Caxias, no Estado do Maranhão. Viveu em Vitória-ES, onde fez sua carreira como poeta, contista, advogado, professor universitário e político. Vencedor de vários prêmios Nacionais e Internacionais. Ocupou a cadeira nº 01 da Academia Espírito-santense de Letras. Possui mais de 20 livros publicados.
.:: MIGUEL MARVILLA ::.
A ausência dela
A ausência dela se abate sobre a cidade,
como as estações do ano ou uma chuva impiedosa e constante.
É um tempo, este, de funcionários e galochas.
No átrio da catedral gótica das lembranças,
o nome dela erige-se em espelhos
e se repete, ad infinitum,
pousado sobre um futuro de pó e nunca mais.
Algumas vezes o esquecimento se esquece de quem é
e pensa recolher em outra um gesto de folhear livro,
uma forma de olhar para o dia com embriaguez,
o ouro das palavras — que eram atributo e privilégio dela.
Mas não.
Tudo que há é uma hora abandonada
a um canto do silêncio.
Tudo que há é a impossibilidade,
uns ermos de chumbo,
encimando a constância irremovível do vazio.
Anda-se lentamente.
Voa-se lentamente.
Morre-se lentamente.
Até os acasos ocorrem lentamente.
Não é à toa:
a presença dela fazia a vida vertiginosa,
a presença dela não se atravessava a pé,
a presença dela estilhaçava o normal e o cotidiano,
a presença dela era teatro de uma guerra
feita com espadas de olhares
e armaduras de algodão.
Mas se estabeleceu um momento em que todas as coisas
são a ausência dela.
A ausência dela se alastra, incontida, pelo planeta.
Eu preciso aprender a ser outro
para suportar.
Fé
Deus! Ó, Deus! Sou eu... Este aqui, ó,
Que acaba de perder o prumo
E veio tateando no escuro
Cada palavra do caminho.
Sou este ser de pó, aquele amigo
Do efeito lateral das sombras.
Não tenho nome, mas retiro
Dos sons a minha substância homem.
Venho desdizer o que não disse:
Que você não existia e, se existisse,
Não se importava comigo, o errante.
Este soneto acaba já, mas antes:
Eu sei, você existe e, com certeza,
Também ama comida japonesa.
Miguel Marvilla (1959—2009)
Nasceu em Marataízes-ES). Foi mestre em História Antiga e escritor: Os mortos estão no living (contos), Dédalo, Sonetos da despaixão, Tanto amar, Lição de labirinto (poemas), O Império Romano e O Reino dos Céus (história). Fundador e editor da Flor&Cultura Editores.
Nasceu em Marataízes-ES). Foi mestre em História Antiga e escritor: Os mortos estão no living (contos), Dédalo, Sonetos da despaixão, Tanto amar, Lição de labirinto (poemas), O Império Romano e O Reino dos Céus (história). Fundador e editor da Flor&Cultura Editores.
.:: PAULO ROBERTO SODRÉ ::.
Conversa com sombras
Para Lino Machado
1.
Sob a sombra da mangueira,
um rato (de si empoeirado)
fuça o sumo solar da manga
largada, à sorte, ao chão.
O chão, entregue a sua generosidade,
acolhe a sombra, o rato, a manga,
e o pássaro, repentino na paisagem
desarmada, estranha. E fecunda.
2.
O rato, esquecido de si
à luz indócil do meio-dia,
não sente senão a bondade do fruto
suave sob seu escuso olhar corroído.
O que vê da manga ninguém saberia.
Colhe o fruto sem dar por isso,
mas lépido, ao som de passos,
retorna à ausência de luz.
3.
Filigranada em sombra,
a mangueira permanece,
como o chão, entregue
à ventura de seus frutos
à mão, à boca, à sombra.
4.
Do escuro cavado à sorte,
espreitam o rato e sua poeira,
inertes no cheiro acre
que só a sombra dócil,
o chão
e a manga
ignoram.
Paulo Roberto Sodré (1962)
Capixaba de Vitória. Tem textos publicados desde 1984: Senhor Branco ou o indesejado das gentes (poemas, 2006); Poemas de pó, poalha e poeira (2009); Guido, a folha e o capim (literatura infantil, 2010).
Capixaba de Vitória. Tem textos publicados desde 1984: Senhor Branco ou o indesejado das gentes (poemas, 2006); Poemas de pó, poalha e poeira (2009); Guido, a folha e o capim (literatura infantil, 2010).
.:: OSCAR GAMA FILHO ::.
O amor no futuro do presente
Pois eu, vidente do amor que virá,
Sei que não tenho presente
de onde possa alcançar o futuro do presente,
Sei que não posso alterar o meu fado,
E sei também que posso alcançar
apenas o futuro do passado.
Estou partindo sem coche.
Há muito, desde ontem, que estou a pé
partindo até hoje.
Com um pé no passado em que fico,
Parto para o presente que renego
e para o caminho hemorrágico
de uma brisa feita de pregos.
Estou partindo à força, sem que haja passagem.
Amanhã, se você me procurar, amada do futuro rico,
Terá de gastar três dias de viagem
para chegar ao passado em que fico,
Para chegar ao passado em que fico sem nós dois.
Mas creia que, em três dias de viagem projetados para depois,
Não se acha aquele que está preso ao passado.
E eu, que um dia amarei seus lados,
Estou cercado pelos meus pés no passado e no presente,
Um rei preso que se ressente,
Estou cercado pelo meu próprio corpo,
Prisão privada que os limites do rei torto demarca e retém,
Um próprio corpo só, em que não existe mais ninguém.
E eu, que um dia a amaria,
Estou cercado pela prisão quente
que meu corpo estende
no tempo que meu corpo fia.
Oscar Gama Filho (1958)
Nasceu em Alegre-ES. Autor de: De Amor à política, 1979; Congregação do desencontro, 1980; O Despedaçado ao espelho, 1988; O Relógio Marítimo, em 2001. Publicou ainda História do Teatro Capixaba: 395 Anos, 1981, Teatro Romântico Capixaba e Razão do Brasil, lançado pela José Olympio Editora em 1991. Realizou a exposição de arte ambiental poético-plástica Varais de Edifícios, em 1978, e gravou o disco Samblues, em 1992 — incluído no selo histórico Série Fonográfica do Espírito Santo. Em 2005, lançou o CD Antes do Fim-Depois do Começo, contendo músicas em parceria com Mario Ruy. Dirigiu suas peças teatrais A Mãe Provisória, em 1978, e Estação Treblinka Garden, em 1979. Pertence à Academia Espírito-santense de Letras e ao Instituto Histórico e Geográfico. Profissionalmente, é psicólogo clínico.
Nasceu em Alegre-ES. Autor de: De Amor à política, 1979; Congregação do desencontro, 1980; O Despedaçado ao espelho, 1988; O Relógio Marítimo, em 2001. Publicou ainda História do Teatro Capixaba: 395 Anos, 1981, Teatro Romântico Capixaba e Razão do Brasil, lançado pela José Olympio Editora em 1991. Realizou a exposição de arte ambiental poético-plástica Varais de Edifícios, em 1978, e gravou o disco Samblues, em 1992 — incluído no selo histórico Série Fonográfica do Espírito Santo. Em 2005, lançou o CD Antes do Fim-Depois do Começo, contendo músicas em parceria com Mario Ruy. Dirigiu suas peças teatrais A Mãe Provisória, em 1978, e Estação Treblinka Garden, em 1979. Pertence à Academia Espírito-santense de Letras e ao Instituto Histórico e Geográfico. Profissionalmente, é psicólogo clínico.
.:: ORLANDO LOPES ::.
MUDOU-SE O TEMA (ONDE O MAR COMEÇA)
A aventura é o mar ou essa forma
Que se forma depois, que vai viver
Na memória dos dias?
Egito Gonçalves
I
a vida inteira
procurar aquela coisa – a coisa –
que nos começa
e encontrar à porta de casa
o mar
que nunca cessa:
oceano que se transforma em ar
e – maresia – nos corrói
entranha-nos ao nos atravessar
nosso mar (também salgado) é mais impessoal
é semi-desumano: ascese de quem não navega
festa mais simples de água peixe sal (não é mar de mitos
não oculta monstros infinitos
nem tesouros de ouro jóias dobrões de prata)
é mar puro
água apenas mareal (e se escorre em nossas veias
é porque não nos foi dado chão
senão no barro de que fomos tomados
emprestados)
sim
é um mar (que guarda ainda lágrimas de mães e esposas
e sangue de irmãos e pais
aquela melancolia séria
da miséria do caiçara)
como todos os mares (por mais distantes): malabar
um mar
de párias
II
aqui
à minha frente
o oceano em vão: separa duas índias
isola duas áfricas
(estende-se o palco da ação divina [:]
de um lado a brisa que afaga
de outro a crina que fustiga cabeças de pedras ou estirões de areia infinita)
eu (vivo a vida inteira a oceania
desta península que ameaça sempre invadir a
água
mas deixa o mar escorrer (cardumes caóticos berços viveiros)
entre as pernas
e entre os braços
para dentro
para sempre)
[:] sou paraalelo
como farelo de alegria
tenho irmãos naquela ponta que o meu olho ronda?
que latitudes de querer-quererão eles que eu fixe
(a que bel-prazer
de que
de qual
sextante alegre ou triste)?
Orlando Lopes
Poeta, ativista cultural e professor de Literatura na UFES. Publicou Hardcore blues - apocalyptic songs (1993) e Occidentia (2007). Participou das antologias A parte que nos toca... (2000), A poesia espírito-santense no século XX (1998) e Daqui mesmo – 34 poetas (1995).
Poeta, ativista cultural e professor de Literatura na UFES. Publicou Hardcore blues - apocalyptic songs (1993) e Occidentia (2007). Participou das antologias A parte que nos toca... (2000), A poesia espírito-santense no século XX (1998) e Daqui mesmo – 34 poetas (1995).
.:: ELTON PINHEIRO ::.
Canto
Um
rosto descarnado percorre
a rua dos loucos
... rua dos barulhos moucos;
escuta o não falado, anda nu
e abandona os doutos, de copo e cana
na academia ensinando angu.
Mestres no Boulevard com Dulcce & Garbana,
seus rostos alvos, grandes Alexandres
altivos, depois parecem vários Dantes,..
sentem o gosto de Chivas nos odres,
babam as pernas boas das estudantes.
Sem desejo o abissal os deprava
na estória de suas vidas sem dolo.
Para a moral que a castidade lava
roubam das ninfas o seu colo,
para o sonho das raparigas em flor algo dava
aos seus carrosséis corcéis alados...
Para a outra carne de sua lava
o punho escroto dos soldados.
Ele espera o muting e canta ex...
o descontrole futuro do prazer de santo.
A donzela que grita em muitas tvs
É a vítima intensa de seu único canto
e bordava uma noite com duas luas
nas mãos de marfim.
Ele espera uma noite de todas as ruas
no louvor alado de um querubim.
Pela aldeia, no meio das casas
sua voz ecoa. Trazem-lhe a peste na flor
do campo que Freud as Moiras com asas
enquanto a histeria goza olor.
Por que a túnica de José o vestia?
Joio de seu próprio trigo; sacramento...
Quando o último sábio ele consumia
entregava-lhe seu entretenimento,
quando o sonho do barro brilhava
sonhava com asas de um monumento...
para todas as coisas ele inventava
as asas que Hermes roubou do vento,
e as cidades que sempre cantava
existiam numa constelação sem alento
até quando alta noite o mundo descansava
e as estrelas eram seu talento.
Acendei... crivai de luzes o teto
onde a caravana branca atravessa.
No espetáculo roto de tudo exceto
o outro tudo de outra estória nessa
e os heróis digam que suas glórias
estavam escritas nos autos
e que desde sempre se foram em memórias
de párocos, gênios, mendigos, arautos
e que desde sempre morrem de tarde
quando já nem existe por que morrer...
Enlouquecei... acendei o covarde
medo de viver.
Um
rosto descarnado percorre
a rua dos loucos
...rua dos barulhos moucos;
Elton Pinheiro (1969)
Natural de Vitória. É cantor, compositor, poeta e artista visual. Escreveu o livro de poemas Orações com vícios de linguagem, Secult, 2006, indicado ao Prêmio Taru 2007. Alguns de seus trabalhos visuais ilustram blog, livro, CD e site e CD do músico Alvaro Gribel, bem como o último livro do escritor Herbert Farias.
Natural de Vitória. É cantor, compositor, poeta e artista visual. Escreveu o livro de poemas Orações com vícios de linguagem, Secult, 2006, indicado ao Prêmio Taru 2007. Alguns de seus trabalhos visuais ilustram blog, livro, CD e site e CD do músico Alvaro Gribel, bem como o último livro do escritor Herbert Farias.
.:: MARIA AMÉLIA DALVI ::.
1.
Como trazer à tona
tudo o que há de trapaça
em qualquer zona que
perpétua se desfaz?
Se justo o que pensa
passa, e passando mira
seu rumo de serpente, jogo,
mundo, que é o menos,
fica; mas,
se é mais e vai-se,
vazando, turno claro,
do não pode e que tais,
a trapaça, o conflito,
o jogo, o menos e
a sobra – a luz mínima:
como fazer ser tênue
o que sequer sabe e
pode querer a super-
fície? (Só de paz.)
2.
Catamos e comemos flores
como quem desfolha brócolis
para o almoço; tendo em
vista o miolo roxo, ortodoxo,
no qual se abrigam insetos
– confessemos – repugnantes,
esmagamos antes suas pétalas
amarelas, como quem torce
um pescoço, com nojo de
si e, muito e mais, dos outros;
ainda não sabe, mas se
trata de um telegrama da
morte; todo defunto arde
como as folhas que mastigamos,
sobre cujo fedor, qual sempre,
silenciamos.
3.
As coisas que te ocorrem, até onde
balançar talvez importe, missivas
do destino certo são; rentes como
toda pedra que amola gumes longes,
a traçar cortes precisos, inúteis
e ferinas, assim as coisas vêm e vão.
Rente às lâminas, porque abaulada,
daí pedra, dura, tal precisão;
de viés, a vida passa e ser e
tanto é pó e nada – às coisas, vagas,
resta a certeza: que tudo que pensa
passa, e até mesmo a prensa; ela, não.
Maria Amélia Dalvi (1983)
Nasceu em Vila Velha-ES. É mestre em Letras, doutora em Educação e trabalha como professora da graduação e da pós-graduação na Universidade Federal do Espírito Santo. É autora de Drummond, do corpo ao corpus: O amor natural toma parte no projeto poético-pensante (Vitória: Edufes, 2009) e de Drummond: a invenção de um poeta nacional (Vitória: Edufes, 2011).
Nasceu em Vila Velha-ES. É mestre em Letras, doutora em Educação e trabalha como professora da graduação e da pós-graduação na Universidade Federal do Espírito Santo. É autora de Drummond, do corpo ao corpus: O amor natural toma parte no projeto poético-pensante (Vitória: Edufes, 2009) e de Drummond: a invenção de um poeta nacional (Vitória: Edufes, 2011).
.:: LUCAS DOS PASSOS ::.
Desenhos de pétalas, dentes de cactos
Para Maria Amélia
Em sinceros jardins, dentes de cactos,
lascados nalgum ponto pelo vento,
fazem coro silencioso e calmo,
vociferando, em branco e preto, nervos
de pétalas de aço – reflexo azul (ou verde)
de metade do que eu não chego a ser.
Na mão esquerda, desenhos de pétalas;
em páginas destras, dentes de cactos.
Sobre um tema de Miguel Marvilla
A outra mulher da mulher que quero
enfia, lambe e cheira melhor que eu,
mas não fuma e nem faz sonetos mancos
(só bebe em taça branca o que não é sêmen);
não conhece os abismos aonde fui,
mas sabe a superfície de sua pele:
tatua, letra a letra, com seu nome,
o ruído febril que me despreza.
Dali seus olhos sempre me censuram,
me ensinam a seguir o fino risco
de suor que deixara aceso nela.
Assim, ausente e ativa, invade minha
língua, desce a garganta, intragável,
e, comigo, desponta suja, agora. Lucas dos Passos (1989)
Poeta, revisor, professor de literatura, mestrado e doutor em Letras (PPGL/Ufes), com pesquisa sobre a obra de Paulo Leminski.
Poeta, revisor, professor de literatura, mestrado e doutor em Letras (PPGL/Ufes), com pesquisa sobre a obra de Paulo Leminski.
.:: CASÉ LONTRA MARQUES ::.
Por que estas palavras atiradas à superfície da fala?
uma
ave — talvez água — ávida:
concedemos à sonolência
dos
seres
de sono escasso
o rumor
de uma memória em que
o medo,
a areia, o êxtase,
a sede,
o palco compõem
a ponte
para
outro
descompasso. O texto
do
encontro. Inventa
o retorno,
o avanço. O rastro: vigio
ao redor do mutilado, tateando
por
entre a poeira; narro
— quando
não
nos ouço — o necessário
sobre
seu passado. Corrijo:
sua voz — seu corpo, híbrido —
inventa
o relato,
o fôlego: esmaga, com
as mãos
retesadas, o espaço
que
repousa
nos joelhos,
o espaço
despejado
pelo dia que o silencia,
pela
noite
que o cega, o espaço
resignado a qualquer
ausência,
a qualquer
afago, resignado porque
não se quer
derrotado (apesar de combalido),
nem
interrogado
(apesar
de
compulsivo),
reconfigurando — depois
de aliciar
o aleatório, depois
de
elucidar o latente —
o espaço: para
o parto; o espaço: para a paralisia;
o espaço:
para restaurar — ruidosamente restaurar —
a saliva,
o bulbo, a cica, o sopro que
forma
o fogo; o espaço:
para
apascentar
a apatia;
o espaço: de uma língua
de
alumínio: o espaço:
de um crânio
de
cobre:
o espaço: como um trinco
na
traqueia: o espaço: como
uma teia
de
válvulas
nas
veias,
como uma teia (uma trama
não
de atalhos,
de trincheiras) que
estende
o
circuito
(pelo
signo) de novo
nítrico
do sangue
*
* *
Porque no momento em que me recolhe
sou somente
um ruído que aprende a respirar
sob seus órgãos;
uma forma — violenta — de incandescência:
como
a condensar as idades
das áreas mais claras
da casa
onde
recebemos a extensão da nossa
insuficiência? Espalho as frutas
pelo assoalho
das horas futuras — o que não significa
que suas alas (voltadas para a água)
sejam
únicas: os cães que retornam, calmamente,
formam uma memória
úmida. Por
entre mapas, — reagindo, — ultrapassa
a impaciência: a lenta
permanência
da impaciência cuja ossatura
excede a fala:
em torno
da
xícara vazia — enquanto
a face
— súbita — vibra:
os objetos que prolongam o corpo,
as letras
que povoam
a página, os segundos
que precedem
o sono
revivem, indefinindo-nos,
o risco
de um riso nítido.
*
* *
Atravessados por ventos de repente
rarefeitos, lapsos
sísmicos tateiam a inútil
instabilidade
da desintegração: este estímulo
à estima — entre
frequentes fraturas — tantas vezes
articula
uma viva falha: (mesmo
suspeito
ao falso): não
raro respira, como
outros
espelhos, no rastro
dos restos
mal nomeados
*
* *
Passa outra noite pelos pontos onde
tombaríamos
com a cabeça despejada
sobre a nuca,
num
exercício
que desenvolveríamos próximos
do apuro
de uma pétala
decepada;
nossa noite — aquela que
conhecemos,
apesar do que
ainda
não tateamos;
aquela
que esquecemos,
apesar dos fatos
que
fundamos — nos inunda
até
a cintura: é uma noite
imóvel,
instalada
contra a imensa
água
que nos arremessa
a uma
nova
voragem. Movendo a língua
pela cavidade
da boca, brinco
com a areia
que não quero
na garganta. Mas não repudio
a destruição
nem
o desespero — cultivo,
mesmo
que atordoado,
o desprazer — não o desprezo: diante
da voracidade,
penso
nos órgãos
retalhados; penso —
distante
de estar exausto —
nos ossos
assolados
por
uma fácil
insolação. Destino
ao
pensamento o risco
de um nascimento
físico — consolidando
— nos gestos
do corpo — uma pulsação
de acesso
tanto à sutileza
quanto
ao excesso. Quando
descritos
como legião, iniciamos
outro ciclo
de desabrigos: nossa
imagem
desliza — inutilizando,
desse modo,
a comparação — por resíduos
que não conduzem
nem
ao conflito
nem
à exclusão. Sua subsistência
não deslumbra,
da mesma forma
que
a fome (a fome
que inaugura
uma nova
fúria,
uma
fúria alerta)
não deslumbra —
mas
consome
os coágulos
que
apodreceriam
(calcinados
pelo
cansaço)
no
interior
dos passos, antes
que se fundisse — com
os metais
da
desolação — o organismo
a ser
oferecido aos rios
que
a fuligem
acomoda
no
meio de
outros
desperdícios.
*
* *
De qualquer forma, estas pedras não suportariam tanto tempo
em contato com olhares nada
cardeais; certa metáfora, planando, abriu uma fresta
no céu da desorientação, depois
desapareceu através da vidraça ainda
precária. Quando o lábio incha como uma imagem
infeccionada, desconfio
dos dentes mas — sobretudo — daquela palavra
mais uma vez reinventada. A construção da manhã
continua tão sólida quanto
um trauma. Da direção da cidade, em meio
a muita brita, vem uma claridade que o poema,
podendo conseguir, não saberá evitar. A construção
da manhã segue tão versátil
quanto uma vertigem. Tentarei
falar antes que o silêncio desloque outra breve vértebra.
*
Casé Lontra Marques (1985)
Publicou os livros: Movo as mãos queimadas sob a água (2011); Saber o sol do esquecimento (2010); A densidade do céu sobre a demolição (2009); Campo de ampliação (2009); Mares inacabados (2008).
Publicou os livros: Movo as mãos queimadas sob a água (2011); Saber o sol do esquecimento (2010); A densidade do céu sobre a demolição (2009); Campo de ampliação (2009); Mares inacabados (2008).
.:: MARCOS TAVARES ::.
RE / TALHOS
As meninas choravam e choravam
e eu punha colírio nos olhos.
Há muito perdi meu coração
entre um amor e uma rua.
O relógio está quebrado.
O emprego, difícil.
Ainda acabo num hospício,
ou em Faculdade de Letras.
O mundo não é só palavra.
O mundo é redondo rodando.
E os homens continuam quadrados.
O pai queria-me engenheiro,
depois vieram outros filhos,
e fiquei sendo o mais velho.
Não agüento mais essa morte.
Tenho mesmo é vontade de viver.
Um dia hei de ser um homem.
( Junho / 1979 )
OS SETE DIAS
No primeiro dia, visto que estava escuro,
muito escuro, quase trevas, acendi a lâmpada.
No segundo, senti a expansão das águas
e providenciei conserto no encanamento.
No terceiro, semeei alface, reguei as plantas,
colhi os frutos segundo as espécies.
No quarto, fui tentado a dormir,
então, resoluto, serrei a cama e a janela.
No quinto dia, soltei os pássaros,
aos cães dei de comer e de beber.
No sexto, depositei o lixo recolhido
aos cinco cantos da casa.
No sétimo, exausto, deitei-me ao chão,
e, vendo o quão isso era bom, ali descansei.
E não sou ---- obviamente ---- Deus algum.
( 30-08-1982 )
POLUIÇÃO
CO CO CO CO
tosse tosse tosse
CO CO CO CO
tosse tosse tosse
CO CO CO CO
tosse tosse tosse
CO CO CO CO
tosse CO
tosse CO
tosse CO
tóxico
monóxido
carbônico
ó
t
bi o
Marcos Tavares (1957)
Natural de Vitória. Ficcionista, publicou No Escuro, Armados (contos, Ed. FCAA / Anima, 1987) e GEMAGEM (poemas, Ed. Florecultura, 2005). Eleito em 2011, ocupa a Cátedra nº 15 da Academia Espírito-santense de Letras (AEL).
Natural de Vitória. Ficcionista, publicou No Escuro, Armados (contos, Ed. FCAA / Anima, 1987) e GEMAGEM (poemas, Ed. Florecultura, 2005). Eleito em 2011, ocupa a Cátedra nº 15 da Academia Espírito-santense de Letras (AEL).
.:: SÉRGIO BLANK ::.
APÓSTROFO SEGUIDO DE S
a minha letra — risco em silêncio
não é a de enxofre
nem consoante fricativa alveolar surda
não é santa ou santo ou são-salavá
a décima-oitava letra do alfabeto
a minha inicial — cronograma em sangue
dois segundos de poema
espírito escrito na cidade
que neon algum ilumina — ofusca em sono
a letra muda desta planta genealógica: cáspite
o esse — cascavel em catacrese
o nome em que me inscrevo no juízo de salomão
minha voz rubricada nestes versos — quatorze no todo
BARROCO NO BAR
sentado a bordo desta basílica alcoólica
faço baralho com todos à vista
ás a rei ao boreal ou ao sul
bebo a todos sem as hierarquias
se sou barão e ele é mais pois é visconde
ou o tal ali possa ser arquiduque
vão todos à merda e duque foi nome de cachorro
barbitúrico à mão de cor tão bordô
faça-me instrumento de sua paz
que a noite é feto e esperança é a última que falece
Sérgio Luiz Blank (1964—2020)
Nasceu em Vitória-ES. Publicou: Poesia: Estilo de ser assim, tampouco, edição alternativa promovida pela Fundação Ceciliano Abel de Almeida/Ufes, 1984; Pus, Fundação Ceciliano Abel de Almeida/Editora Anima, 1987; Um, Cultural-ES, 1989; A tabela periódica, Secretaria de Produção e Difusão Cultural/Ufes,1993; Vírgula, 1996. Literatura para crianças: Safira, Departamento Estadual de Cultura, 1991.
Nasceu em Vitória-ES. Publicou: Poesia: Estilo de ser assim, tampouco, edição alternativa promovida pela Fundação Ceciliano Abel de Almeida/Ufes, 1984; Pus, Fundação Ceciliano Abel de Almeida/Editora Anima, 1987; Um, Cultural-ES, 1989; A tabela periódica, Secretaria de Produção e Difusão Cultural/Ufes,1993; Vírgula, 1996. Literatura para crianças: Safira, Departamento Estadual de Cultura, 1991.