Na pele, ainda o frio das
noites diferentes de Alagoa Nova,
batendo quase gelado nas
paredes mornas da memória.
Esperava apenas que se encerrassem as tradicionais festas de fim de ano, para provar dos ares agradáveis da cidade aconchegante, que chegavam desgarrados das curvas serranas do planalto da Serra da Borborema, apelidada de Princesa da Borborema, mas que, na verdade, era a cidade de Alagoa Nova, terra de minha mãe.
Os estímulos convergem hoje para os sabores dos tempos idos e vividos, degustados outrora ao sabor da euforia lúdica, ao sabor inesquecível das férias, comumente, motivo de pequenas e imensas euforias. Dias impetuosos aqueles! Pensamentos meio irrequietos, tomando rumos pelo barro da estrada, no caminhão de Seu Abílio, que me levava - todos os anos – à convivência com o meu avô, tios, tias e primos, durante o decorrer de um mês.
Menino, naquele tempo, podia até nem perceber, mas guardava, no escrínio do inconsciente, quase tudo o que não estava ao seu alcance analítico e, por um processo também incônscio, guardava para lembrar mais tarde toda a sua dimensão, quando o tempo consumisse os dias, e o olhar incrustrado no forno da lembrança pudesse fermentar tudo em perspectivas gigantescas no porvir.
Agora sei que pude sentir o que nesses dias se passaram, misturando-se às conversas castas comigo mesmo, um tanto monologuistas, que ultrapassavam os limites dos ponteiros das horas, na mais estreita e incansável afinidade com os instantes e com as coisas simples do mundo.
Após subir a Serra da Borborema e viajar por mais de noventa curvas da chamada “Serra de Areia”, para findar a viagem, já entrando na cidade, avistava, de longe, o Pirauá, uma árvore centenária de mais de trinta metros de altura, que ficava no espaço, acenando para o mundo. Mensurava a sua dança através do seu ritmo sensual, requebrando suas folhagens na ventania. Pareciam bênçãos da natureza, aparentemente distantes, mas que, de tão perto, me faziam elevar os olhos numa esplendorosa ascensão de graça.
Depois, finalmente, chegava até aquela casa grande. Dava logo de cara com algumas estampas antigas de santos, emolduradas. Elas insurgiam poderosas no ambiente da sala. Tudo retratava um dia diferente, traçado pelos cantos inusitados do lugar e logo faziam as pazes com a minha timidez, e a minha timidez, por sua vez, com elas.
Lá estava eu de novo, hóspede na casa de Seu Gemil, meu avô. Homem simples, amável, do qual extraí os suprassumos de paciência em sua afetiva atenção e um riso desabrochado no meio do seu bigode, meio tisne, borrado da fumaça do seu cigarro “boró”, que gostava de acender em suas horas de descanso e solidão. Eu o percebia e nem via que a vida dependia apenas de um sorriso, de um florescimento e de uma iluminação que chegavam já eternos a invadir a minha tenra internalidade!
Havia um clima de confluências! Ou seria a real presença de uma felicidade precoce a chegar conduzida pela unção que a própria idade apregoava? Certamente, eram os fatos que vinham refletir nas repetidas consequências, mas que já estavam plantadas como sementes de palavras e de gestos amorosos, guardados em tanta afabilidade.
Aprendi que semear foi o ato de louvor que mais frutos me deram. Colho-os agora porque, outrora, os semeei, involuntariamente, para o futuro que é hoje. Amadureci-os, pouco a pouco, no calor daquela harmonia integralizada que só mostrava o doce lado de tudo.
Havia uma sintonia cadenciada entre mim, meu avô e a tia Cecília. Decerto, eram coisas afins. Eram pequenos e notáveis gestos do nada. Lá não era simplesmente uma casa; era um tipo de paz que acendia uma reunião de fatos e de valores. Vozes do silêncio, admoestando, conduziam e faziam do ambiente um exemplo de solitude inofensiva. Ensinavam-me, com o ego mergulhado na harmonia, um sotaque meio rudimentar a aprender a falar, com parcimônia, através das puras imagens que essa vida costuma nos ofertar quando estamos em formação. Aprendi a ver essas nuanças nos rostos e nas horas do meu avô e tios, fartos de inesquecíveis doações.
O dia amanhecia sem movimentos bruscos e sons que ousassem poluir a calma do dia nascente. Só se ouvia o rádio do meu avô, que era ligado baixinho logo cedo da manhã, pra ouvir o desafio de dois cantadores de viola. Eram um acalanto aquelas brigas poéticas, sem iras, (e com liras), sem farpas e nem rancores! Já faziam parte do seu amanhecer e do seu interior!
No chão, farfalhava o som dos seus passos arrastados, andando devagar. Vozes compassadas... Da cozinha, vinha um som de um riscar de fósforo. Acendia-se o fogão de lenha, e emitiam-se, vez por outra, palavras sem direção no dia amanhecente.
À tardinha, luz do sol sumindo. Da janela, avistava o meu avô já voltando do sítio na lenta escuridão. Mais tarde, a noite ia aumentando, indisfarçadamente. Havia energia elétrica, mas – qual! – ele gostava de um lampião a gás. Achava curioso quando o via acender, fazendo sibilar uma chama acesa dentro de uma tulipa de vidro. Já recolhido para dormir, eu ouvia latidos de cães trazidos de longe pelos ventos da noite.
Os latidos dos cães pareciam-me entrar pelas frestas do telhado. A impressão que eu tinha era de latidos distantes, aproximando-se em minha direção. Era tudo na minha imaginação. Hoje sei.
Naquela casa, as horas eram longas, a severidade era branda, não existia pressa, e os seus espaços cortavam as convenções formais para se tornarem refúgios paradisíacos em todos os seus ambientes. Assim também era essa cidade, a qual digo, não fosse ela, havia me faltado algo muito revigorante.
Imagino o que deve ter vivenciado da sua infância o ex-Governador do Estado da Paraíba, Pedro Moreno Gondim! O que devem ter assimilado para a vida os cronistas Gonzaga Rodrigues e Carlos Romero! Penso que, em suas vernaculidades de grandes escribas, em seus plenos instantes de viagens ancestrais, os dois sempre desembarcaram, em seus papeis, um pouco de Alagoa Nova, hibernada no coração!
E o José Leal, decano do jornalismo paraibano, juntamente com os filhos Teócrito e Wills Leal, o que devem ter trazido, nas suas bagagens, dos dias frios da Princesa do Brejo, essa terra simples e encantadora?! Presumo que tenham conduzido a grandeza, a interioridade e extensão da vida, nesses olhares de quem faz da escrita uma fonte cristalina, que já molharam algumas vezes a retina invisível de suas memoráveis fortunas sagradas.
Na Igreja de Santana, padroeira da cidade, havia um pároco, o Monsenhor José Borges, um vigário que possuía um timbre de voz estridente, vociferante, maior do que o de um locutor de FM.
Um dia de domingo, presenciei o Monsenhor bem na hora da “prática” da missa, a que chamamos hoje de homilia. Parecia que o seu sangue havia subido todinho para a cabeça. O seu rosto ficou vermelho feito uma fita, o nariz aboticado exibia uma repreensão insustentável. O vozeirão esgrimia palavras por todos os cantos da igreja. Ele aproveitou a hora do sermão para reclamar dos pais que permitiam que os filhos e filhas menores se escondessem no “Manteigueiro”, para a prática do que - para ele - era pecado. “O Manteigueiro” era um tipo de coreto meio escondido e escuro, situado na praça central, onde meninos e meninas, que mal haviam saído da segunda infância, escondiam-se para abraçarem-se e beijarem-se demoradamente, com direito a quase tudo.
No dia seguinte, todo mundo já sabia da lista dos felizardos. Evidentemente, os que mais se destacavam estavam lá, os que mais viajavam nos impulsos de seus primeiros êxtases, nos quindins que ajudavam a desvendar as suas intimidades e segredos. Mesmo estreantes das perdições amorosas, não usavam freios de mão. No escuro, eram observados pelo vigário que, da janela de sua casa, espionava, por um binóculo, o paraíso dos meninos. Na missa de domingo, dava-se o julgamento perante todos os santos!!! Eram denunciados os atos pecaminosos praticados, muito embora o religioso nunca tivesse apresentado nenhuma sugestão que servisse de fiança para livrar os menores do crime de legítima defesa dos seus amores escondidos e enternecidos!!!
Todas essas trajetórias tomam posse da elevação de nossos antepassados. Com atraso? Nunca o é. Somos feitos de espelhos retrovisores, e esses fazem parte das imagens que nos levam à cidade de Alagoa Nova. Sobretudo, à casa onde construí um reduto místico de infinitudes quando saía de férias do Seminário Arquidiocesano da Paraíba, na Capital paraibana. Enfim, não ousei deixar que a felicidade ficasse perdida. Trouxe-a comigo porque percebi que ela é simples e não poderia deixá-la ir embora, por não perceber a sua simplicidade, como bem se expressou o poeta gaúcho Mário Quintana.
Tá aí, Solha, o resultado da tua materialidade, quando escreveste na orelha do meu livro de crônica “Face Oblíqua”: “Lembro-me de que uma vez dei com Crispim nos bastidores do Santa Roza e lhe disse: “Você deve ter tido uma infância extremamente feliz, não?” E ele, sorrindo iluminado: “Tive”. E tive inveja dele. Como tenho, agora, de Saulo Mendonça.”
Há momentos em que o “Fui feliz e não sabia”, infesta-se no peito dos memorialistas! Mas, além disso, sentir a pura convicção de ter sido feliz na infância pesa e prende mais, dá um prazer múltiplo de felicidade confortante, e nem o tempo, com suas duras borrachas, consegue apagar.