Como eras minha, se deixaste de ser? Pouco importa que a lógica diga que tudo que é deixará de ser; ou que o que é só é porque promete que deixará de ser; ou que, na dialética metafísica, o não ser é que dá substância ao ser. Eu não quero esta ciência. Eu preferiria o inteiriço nada, na sua plenitude de não desfazer-se, do que ter-me sentido pleno e hoje ser apenas fragmentos de nada.
Querida (ou amaldiçoada!?), por que até ontem o mundo era um concerto de Bach e hoje é o desconcerto de um funk? Por que até ontem a vida era ciência pura e hoje é barbárie? Por que o amor me inutilizou a vida do modo mais perfeito e irreversível?
Se me apagaste a alma e me vetaste o verbo, ao levar-me todo discurso amoroso, que palavras amorosas eu ainda poderei dizer a mulher alguma sem sentir que estarei profanando as que te disse, sem sentir que estarei mentindo, se todas as palavras que inventei para ti tornaste provisórias, e eu pensava estar nomeando o eterno?
Como poderei não sentir-me um cínico cósmico, um cínico cômico, ciente de seu cinismo, repetindo ao alto-falante, a outra mulher, o que sussurrei ao teu ouvido: “Você é a mulher de minha vida!”? Como poderei repetir esta frase, acreditar nesta frase, se ela foi dita antes a uma mulher que me trouxe à vida e me roubou a vida?
Antes de ti, as ruas da cidade eram burocráticos nomes ou espaços amorfos de trânsito, que rebatizamos com nomes particulares e passaram a ter face e ser topos de uma geografia amorosa; agora, sem ti, cada rua perfura a alma, estilete de tua ausência.
Os nossos silentes códigos íntimos, que possibilitavam a mais perfeita comunicação dual em meio à multidão inexpressiva (que eram quaisquer grupos que nos sitiassem com sua loqüela ininteligível), gritam ao meu ouvido como o canto da Sereia de Homero.
Não existe segunda esperança: entraste em minha vida como uma mão talentosa ilumina a última página ainda em branco de um grande romance. Não há mais romance possível, e a esperança, ao contrário do adágio, é a primeira que morre.
Responda-me que estou sonhando, que isto é apenas um pesadelo, ou serei obrigado a pensar que não passo (ou “que o amor não passa”) de uma ficção (“aterradora”), uma invenção de Poe, que põe seu corvo a grasnar no meu ombro “Nunca mais, nunca mais, nunca mais.”