“Quem não gosta caia fora, escolha os livros que vão para a casa de campo ou para a ilha deserta. Com Carnaval não se brinca. Quem gosta já escolheu fantasia, escola para desfilar, ligou para os amigos do bloco, já sabe de cor o samba-enredo. Quem gosta nasceu assim, nem desgosto vai mudar."
Rosiska Darcy de Oliveira, "Carnavalescas", em A natureza do escorpião
Rosiska Darcy de Oliveira, "Carnavalescas", em A natureza do escorpião
Tomei emprestado o título da crônica de Rosiska Darcy de Oliveira — Carnavalescas — devido à minha identificação com seu relato do espírito do carnaval. Gosto também da definição dada por ela no artigo “O carnaval é uma festa virtuosa” publicado no jornal Estado de São Paulo:
“O carnaval tem a má fama de ser a festa da luxúria. Não é, ou é, no que a luxúria tem de mais sagrado. O carnaval é uma forma de meditação pelo avesso, uma afirmação do sagrado pelo que há de mais profano...pela nudez que nos impele ao desejo, pelo desejo que acena com a alegria, pela música que batuca no coração, pela liberdade de pular e rebolar sem que ninguém censure.”
Sempre fui louca por carnaval. Quando era menina, contava os dias para fevereiro chegar, pintar os olhos, colocar batom vermelho, brincar no mela-mela do Corso, ir para as matinais da AABB e do Cabo Branco. Mais mocinha, adorava os famosos carnavais de salão: Cabo Branco e Astrea, dançando "Tanto riso, oh quanta alegria" (Máscara Negra )... e explodindo com "Vassourinha ". Só saía do clube nos últimos acordes e toda terça chorava porque tinha acabado. Mamãe fazia um lombo paulista de geladeira para minhas irmãs ficarem bem alimentadas nas madrugadas exaustas. Já nessa época estava casada e os maridos, com raras exceções, nunca gostam muito de carnaval...
Passei anos sem brincar, mas com aquela angústia de ver minhas irmãs se esbaldando na festa do Momo. Tive também o tempo de afastamento voluntário do carnaval, pois as pessoas ao meu redor não gostavam. Era o tempo dos acampamentos. Nessa época foi muito bom descobrir outras formas de vivenciar os quatro dias de suspensão. No final da década de 70, tivemos temporadas em Baía Formosa, nas casas de Glauce Caldas, Guilherme Faulhaber, Décio (que saudade!) e Yeda Moura, Marcone Serpa, Bitu. E viva Dona Regina e Dona Vandete, as primeiras-damas da bela enseada potiguar...
Devo mencionar, também, os carnavais nas praias de Pipa (RN), Canoa Quebrada (CE) e Francês (AL). Tivemos a sorte de usufruir esses paraísos da orla quando ainda eram vilas de pescadores, com direito a peixe fresco, farofa de alho, bobó de camarão, dança de papangu, carapeba frita na hora, cachaças São Paulo e Rainha. Em Canoa, lembro do banho de lata e o por do sol mais lindo daquelas dunas.
Passaram-se os anos e recuperei o tempo perdido com o carnaval de Olinda . As ladeiras, os blocos “Eu Acho é Pouco”, “Siri na Lata” e toda a turma do Funil... o "Maracatu Rural", cujo som poderoso fazia com que me arrepiasse a cada chocalho. A festa da histórica e linda cidade pernambucana representou, para mim, a volta ao prazer de brincar, de me pintar e de sair atrás do bloco, dos bonecos gigantes e das marchinhas em ruas estreitas, mamulengando pelos quatro cantos de Alceu Valença.
Até que, por conta de um poema de Vitória Lima, chegaram As Muriçocas na capital paraibana. Veio, então, a oportunidade de ter tudo o que sonhei para o meu carnaval particular: bloco de rua, gente, fantasia, pancake na cara, purpurina, e o sangue fervendo com os frevos ou qualquer outro batuque. Ao longo desses (cerca de) 30 anos, desci ladeira abaixo, ao som do trio de Fuba, mas também sempre andando em marcha ré e indo em busca de outros trios.
Foi um luxo ver, nas madrugadas de anos atrás, o show de Alceu Valença e sua Morena Tropicana , além da guitarra endiabrada de Moraes Moreira. A folia também teve a participação de Diana Miranda (um espetáculo de Índia Tabajara) e de Chico César, com a magia de Mama África e todo o repertório especial a la Catolé. No percurso, encontrei de tudo: amigos, colegas, anônimos, bêbados e equilibristas. E Para não dizer que não falei de flores , cantada por Chico, foi emocionante — 68 à vista! Vitória Lima de Porta Estandarte e Marina, sua neta, a mais nova Muriçoquinha, hoje moça feita, que de musa de inspiração e poesia já se deu a uns choramingos no portão. Já na praia, exausta e com as carnes trêmulas, tive que me render aos limites do corpo. Não consegui esperar Renata Arruda e Davi Moraes, infelizmente. Em meio a uma calçadinha apinhada de gente, uma beira de mar exuberante e uma lua pela metade, tomei o caminho de casa: banho, comidinha gostosa e uma cama quente me esperavam. Meu cobertor de orelha também...
No início do Folia de Rua, eu era bem serelepe. Saía na Abertura do batuque, nas Piabas, nas Virgens, Muriçocas e Cafuçu. Depois, as pernas já não acompanhavam mais o frisson da cidade e fui estreitando minhas expectativas. Hoje fico reduzida às picadas do inseto e à irreverência do bloco Cafuçu. Fico impressionada ao pensar que, a partir dos versos de alguns poucos, a folia da capital paraibana inflamou-se e cresceu vertiginosamente, ao ponto de termos blocos pipocando a cada esquina — em tempos normais. É emocionante ver a cidade pulsando aos tambores, a alegria do paraibano e o folião se fantasiando para brincar essa festa tão gigantesca, democrática e misteriosa, como disse Rosiska no Estadão:
“O carnaval é sobretudo um grande mistério, uma gigantesca máscara que encobre o rosto trágico dessa nação alegre, colorida de paetês verdes e amarelos, o rosto trágico do Brasil”.
Numa certa “quarta feira de fogo”, ao ser entrevistada, o repórter me perguntou o que ainda me emocionava nas Muriçocas, e respondi: a saída do bloco, os fogos, o trio, e principalmente a multidão anônima, esfuziante e embriagada de alegria. Gostaria de ter dito as palavras de Rosiska sobre o carnaval como festa virtuosa:
“Há tanta sabedoria no carnaval e um silêncio estridente que ninguém ouve em meio ao burburinho...dos blocos resistentes que insistem em reviver um amor que se acabou, em meio à melancolia de foliões que ainda vagam sozinhos pelas calçadas, as asas quebradas pelo cansaço, depois de uma noite de vôo cego sobre a avenida. E ninguém ouve o silêncio em que a vida medita sobre si mesma e sabe que tudo é fantasia, que a vida é sonho, que ela mesma é mais intentada do que real, apenas para levar a cabo o espetáculo que se quer o mais esplêndido, pra tudo se acabar na quarta-feira. Em uma quarta-feira ou outro dia qualquer da semana. Porque tristeza não tem fim e porque a vida dura só um dia...e não se leva nada deste mundo.
Ninguém ouve o silêncio do carnaval, nem reconhece seus rituais ancestrais, arrastados pelos séculos, trocando de fantasia em cada cultura, esses rituais de uma festa dita pagã em que deuses múltiplos insistem em desfilar, cada um certo da sua onipotência, da liberdade infinita que é ser qualquer coisa, qualquer um, second life em carne e osso, muito mais arrojada, provocante e arriscada que qualquer aventura virtual.”
Ninguém ouve o silêncio do carnaval, nem reconhece seus rituais ancestrais, arrastados pelos séculos, trocando de fantasia em cada cultura, esses rituais de uma festa dita pagã em que deuses múltiplos insistem em desfilar, cada um certo da sua onipotência, da liberdade infinita que é ser qualquer coisa, qualquer um, second life em carne e osso, muito mais arrojada, provocante e arriscada que qualquer aventura virtual.”
Termino ainda com as palavras de Rosiska, em seu Carnavalescas: “Que não se metam a besta os cientistas sociais que explicam, os caretas que julgam, os crentes que proíbem. Só os carnavalescos entendem de Carnaval e a esses é dada a sagrada solidão da quarta-feira, só comparável àquela depois do amor.” Ou a esta inusitada quarta-feira de pandemia, em que não houve “zum zum zum”, como disse Rosa Aguiar, neste Ambiente de Leitura Carlos Romero.
Um carnaval com “meditação, sabedoria e silêncio”, aproveitando a solidão amorosa, da qual — espero — os foliões tenham sabido tirar proveito.