Todas aquelas tardes no lombo do seu carneinho que tinha sido presente do avô, José Paulino, Carlinhos passeava pelo engenho, brincava com os meninos, visitava a vizinhança, os colonos e também proseava um pouco. Era muito querido pelo pessoal do engenho.
Naquele dia seria o dia da tia Totonha visitar Santa Rosa, engenho pertencente ao seu avô materno. A expectativa da visita fazia com que o coração do menino explodisse em alegria pura. Ela tinha o talento de contar histórias de contos de fada, que eram transportados para os tempos deles lá na vida do engenho. Contava-os com tanta singeleza e sutileza que todos viajavam nas narrativas dela. Tia Totonha descrevia magias e encantos nas mentes juvenis das crianças locais com sua mente muito criativa.
Foi inesquecível o dia em que tio Juca o levou para o primeiro banho de rio. Aquele mundão de água, aquele frescor, aquela liberdade. Foi indescritível. Ao final, tio Juca disse que a partir daquele momento ele estava batizado e era um verdadeiro matuto.
A enchente do rio veio de repente, após horas de chuvas torrenciais. O nível da água ultrapassou a altura do cercado do engenho. A linha de ferro foi arrastada a mais de 1km. Foram todos para o Engenho São Miguel. O avô de Carlinhos acudiu os flagelados que perderam todas as suas casas que também foram arrastadas pelas águas. Contudo, na sua visão de criança, nada de triste deixava enxergar a tragédia. Estava muito feliz porque todos iriam viajar de carro de boi. Toda a safra de açúcar do Engenho Santa Rosa havia sido danificada e os lavradores perderam os seus leirões de jerimum e de batatas.
Tia Maria, irmã da mãe de Carlinhos, era tida por ele como uma segunda mãe. A sua figura maternal, os seus cuidados desde o primeiro dia em que chegou no engenho. Tratava-o com muito amor e carinho, sempre presentes na vida dele.
Estava no terreiro Carlinhos, a brincar com o seu pião e inesperadamente o pião resvalou de suas mãos indo alcançar os pés da tia Sinhazinha. Foi um acontecimento que a enfureceu e em um acesso de fúria ela deu uma surra na criança. Ele sentiu duplamente a dor, uma vez que esta teria sido a primeira surra da sua vida. A partir do acontecido ele passou a odiá-la com todas as suas forças. Por natureza, tia Sinhazinha era uma pessoa muito difícil de se tratar e de se lidar.
Ah! As tardes que Carlinhos passava ao lado de Maria Clara! Os piqueniques embaixo dos cajueiros , as conversas, os passeios, o primeiro beijo roubado, a sintonia da amizade bonita que eles dividiam. Ele não tinha dúvidas; era amor verdadeiro, tão leve, tão sublime; Até o dia em que Maria Clara teve que voltar das suas férias no engenho, e retornar para sua casa em Recife. Carlinhos a viu tão feliz com a expectativa da viagem de volta, despertou no menino muita tristeza e desconsolo. Se sentiu esquecido, abandonado e só. Passaram-se alguns dias até que se recuperasse das doces lembranças do seu primeiro amor.
Menino de Engenho é uma obra memorialista que foi escrito por José Lins do Rego (1901-1957) e publicado em 1932. Foi custeado pelo próprio autor e se tornou um dos livros mais aclamados pela crítica brasileira e estrangeira, uma vez que existem traduções publicadas em mais de 10 idiomas. Dentre os vários aspectos retratados no romance, se destaca a decadência do Nordeste Canavieiro, a transiçãos dos engenhos para as usinas, o paternalismo e o autoritarismo dos senhores de engenho. É um romance com linguagem coloquial (prosa regionalista ), com uma singularidade na escrita. É o primeiro livro de José Lins do Rego, dentre os diversos escritos pelo autor, que descreve e abre a temática do ciclo da cana de açúcar. É um dos livros mais importantes da literatura brasileira pertencente a segunda Fase Modernista.
O menino que aos 4 anos de idade se muda para o engenho do avô materno José Paulino observa a sua existência se transformar com maravilhosas passagens da vida simples do engenho. Sofre mudanças emocionais profundas e marcantes. É induzido precocemente pelo seu tio Juca a uma conduta libidinosa exacerbada e contrai doença venérea aos 12 anos de idade. Alceu Amoroso Lima, considerado um dos maiores críticos literários brasileiros do século XX, ressalta o valor de José Lins do Rego afirmando que o autor atingiu o coração dos brasileiros. Que a sua força literária de romancista, reflete um problema social unicamente nosso, a agonia de uma casta, o fim do patriarcado.
Raquel de Queiroz foi convidada para escrever o prefácio da obra em seu quadragésimo aniversário desde a primeira edição. Nele, a autora narra a proximidade e amizade com o autor. Destaca que era um homem de muitas leituras, mas que a sabedoria do bom literato não consentiu que suas obras transparecessem os seus saberes. A espontaneidade era o principal encanto dele. Principalmente pela grande ternura de se dar e de se fazer amar. Afirmou ela que José Lins do Rego viverá enquanto houver Literatura Brasileira. O “contar” histórias era uma imposição da natureza dele, que fluía desesperadamente, naturalmente.
O livro me encantou porque é singelo na escrita, e, ao mesmo tempo um registro crítico entre as suas várias narrativas cortantes e tristes, a tal ponto de sentirmos o sofrimento de todos.
José Lins afirma em um dos trechos:
“ A Lei Áurea não serviu de nada porque sobrou a luta nos engenhos, luta árdua, no plantio, no cultivo, na colheita da cana e o que os pobres ganhavam nem dava para o bacalhau que comiam”.