Antigamente, sim, antigamente, tu preparavas para mim caramelos de limão, de caju, caramelos que eu retirava da boca, punha-os contra o sol, e eles se abriam em vitrais coloridos, vitrais gosmentos, que a saliva dissolvia aos poucos. Depois, depois vinha o melhor: a língua escamoteava no caramelo – como se estivesse revolvendo resíduos da cárie de um dente – e sentia o gosto de passa ou de ameixa, de café ou de uísque. Dos cantos da sala subia um cheiro de fotografias antigas que não estavam à altura dos olhos, tampouco das mãos. Tudo ali, inclusive eu, estava dentro de uma fotografia, preso por cantoneiras.
Nas camisolas encaixotadas, eu já imaginava a tua voz pastosa de sono. E, entranhado na textura do tecido, o sangue de gordas muriçocas que eu esmagaria entre o bolor do pesadelo e os fiapos da voz que se desfiariam na tua garganta. Imagino a tua tosse, o teu pigarro reorganizando os fios de saliva que correriam desordenados pela tua goela. Sei que nesses momentos ficaria na borda da cama e os vincos do lençol seriam os rastros da motocicleta. Iria ao banheiro, abriria as torneiras, e delas jorrariam as águas do Sena, do porto, tudo acontecendo num ouriçado pacifismo domiciliar, doméstico. A água imóvel do espelho refletiria a minha face. E depois, tudo seria branco, até mesmo o silêncio que tu mascarias como se fora chicletes, o silêncio contido nas rachaduras dos teus lábios.
Sei que as tuas tias paralisaram os bordados e a tua avó, o bilro. As tuas camisolas foram desencaixotadas para o uso diário. Não sei se ainda fazes caramelos de caju, de limão, ou aqueles recheados de passa ou de ameixa. Imaginei as velhinhas desorientadas, um tal de explicar para as vizinhas, para o resto da família. Vejo os suéteres desfeitos, as lãs tortas sobre o chão, mas ainda agasalhadas na forma anterior. Fios que teimam em reconstituir a saia ou a blusa que eu, em alguns rompantes de apaixonado, descrevia-te na Europa, na nossa lua-de-mel, com a neve se armazenando nos xadrezes e se avolumando em densas crostas que eu retiraria no quarto do hotel, para habitarmos, logo após, o quente território da cama e do coito.
Peço-te um favor: mande-me, numa caixinha daquelas, dez caramelos: quatro de limão, dois de caju, dois de uísque, um recheado de passa e outro de ameixa. O portador é de extrema confiança.
* conto escrito em 1967