Em 1994 veio a público, pela Nova Aguilar, a Obra Completa de Augusto dos Anjos. Organizada por Alexei Bueno, ela reunia pela primeira vez toda a produção do paraibano. Nas palavras do organizador, o volume “constitui o depósito formal de tudo que (Augusto) produziu, do mais contingente ao mais sublime”. Ou seja: não apenas o “Eu” e as outras poesias, coligidas por Órris Soares, como também os Poemas Esquecidos, a Prosa Dispersa, a Correspondência e os chamados versos de circunstância.
Tive um modesto papel nos bastidores dessa edição e presumo que, aos admiradores e estudiosos do poeta, interesse o que narro a seguir. Era um meio-dia de abril de 1994, estou almoçando e o telefone toca. Atendo. Um moço de nome Alexei Bueno, ligando-me do Rio de Janeiro, me pede “um favor”. E que favor? Ele primeiro me explica que trabalha na editora Nova Fronteira e, no momento, está organizando a obra completa de Augusto dos Anjos. A seguir, informa-me o que lhe falta para a edição “sair mesmo completa”: os exemplares do jornalzinho Nonevar referentes aos anos de l908, l909 e 1910.
Esse jornalzinho circulou na Festa das Neves, tradicional evento com que se homenageava (e ainda homenageia) a padroeira da cidade. Segundo o historiador Humberto Nóbrega, Augusto escrevia no tabloide por boemia, desfastio de provinciano e até por necessidade econômica, revelando uma faceta oposta à dos seus poemas ditos sérios. Em vez da angústia, da melancolia e das imagens escatológicas, a colaboração no Nonevar revela a jocosidade e o ludismo de um poeta mundano, atento ao ridículo dos amigos e à beleza das mulheres. Imaginei que só havia um lugar onde eu poderia encontrar os exemplares dessa publicação: a biblioteca do Dr. Humberto Nóbrega.
Prometi a Alexei Bueno fazer o possível e tratei de me mexer. Graças a um parente comum, tive acesso aos filhos do historiador — D. Nitinha e José Francisco, que me receberam com bastante cordialidade e me introduziram na biblioteca do pai. Por força de recente mudança de local, o acervo ainda estava sendo organizado e catalogado. Impossível descobrir, naquela provisória confusão, os exemplares do Nonevar. Recomendei às bibliotecárias o pedido, quase lhes implorando que se empenhassem em nome da Paraíba, do nosso amor a Augusto, da própria literatura brasileira...
Feita a recomendação, esperei. Estava confiante e, ao mesmo tempo, cético. E cético sobretudo pelo que me dissera D. Nitinha: durante a doença do pai, “amigos” se infiltraram na biblioteca e levaram muita coisa. Teriam esses ladinos surripiado também os exemplares do jornal? Diante dessa possibilidade, senti um calafrio. Eu imaginava esse material, de que se tinha apenas fragmentos no livro de Humberto Nóbrega, para sempre perdido. Com isso perdia-se significativa amostra do múltiplo talento de Augusto, que também soube (e fez) rir.
Três, quatro dias depois, toca o telefone (sempre o telefone). E Ana, uma das bibliotecárias, me informa que os exemplares foram encontrados! Não acreditei, até manusear as folhas coloridas (um cor para cada noite), ainda bem conservadas graças ao zelo do Dr. Humberto. Apressei-me em providenciar as cópias e enviá-las a Alexei Bueno. Cerca de três dias depois ele me escreve, entusiasmado: “Recebi hoje, ao meio-dia, os dois envelopes com o Nonevar, em perfeito estado, e você pode avaliar a minha alegria!” (31/05/94).
Poucas linhas depois, numa prova de que não perdia tempo, Alexei informa o saldo parcial de suas pesquisas no material recém-descoberto: “Já encontrei no Nonevar, independente de tudo que precisava, uma quadra e oito crônicas inéditas, que vou começar a transcrever.”. E salienta que, com a inclusão desses inéditos — “e tudo em rigorosíssima ordem cronológica e texto perfeitamente fixado a partir dos originais” —, Augusto dos Anjos teria, enfim, o tratamento editorial que sempre mereceu: de “clássico da língua”.
A 15 de junho, em nova carta, Alexei Bueno dá como encerradas as investigações: “Terminei, com perfeito sucesso, a pesquisa e transcrição dos textos do Nonevar. Reencontrei a ordem cronológica, desfiz uma infinidade de erros de transcrição, localizei prosas inéditas, etc...”. Como se percebe, não foi pequena a contribuição que os exemplares do jornalzinho representaram para a edição da Obra Completa. Agora, sim, Augusto sairia mesmo em texto integral – com o registro de toda a produção conhecida, e confrontada com os originais, em verso e prosa.
Sobre o poeta, escrevi uma tese e muitos artigos. Nada porém me deixa mais satisfeito, e com uma pontinha de orgulho, do que haver concorrido para salvar dos vermes, das traças — talvez do definitivo esquecimento — essa parcela da sua produção.