A gente de origem urbana não sabe nem nunca saberá quão valioso é o privilégio de se conseguir e chegar a possuir, saindo da parede de nossa casa, uma torneira qualquer de metal ou de plástico.
Entrando com um assunto destes em hora de tamanha agonia e sofrimento de todos os povos da terra, não estarei livre de passar por demente. E não é para menos, a julgar pelo cabedal cada vez mais inumerável e infindo de conquistas e descobertas a bem da saúde e do conforto dos povos gerais, mesmo os pobres de hoje.
O coronel José Rufino de Almeida, senhor de engenho de terras avizinhadas à nossa, descreve num opúsculo famoso em que trava polêmica com o diretor da Escola de Agronomia, em “O Século” de Areia, as condições de desconforto das casas-grandes que só tinham de grande o nome. Ele defendia o plantio e fomento da agave em substituição ao fabrico penoso da rapadura, amofinada pelos preços, pelo imposto, em triste decadência. De fato, além da onda, a agave era mais social.
Na nossa casa de alpendres para a secagem do fumo, do feijão e encosto de cangaços, o único luxo era com a pequena capela, sempre ornamentada, a padroeira, N. S. das Vitórias com um trancelim de ouro a cingir-lhe os pés. A sala dividia a largura com meia dúzia de cadeiras de recosto almofadado e um caixão entufado de farinha para cem ou mais cuias de dez litros à espera da demanda. O luxo resumia-se na rede de algodão e na cama de couro. O café era torrado e pilado em casa, o pão de milho também e a higiene era na cuia, as necessidades no urinol, este um privilégio de mulher. Homem saía fora com a cabeça protegida para não apanhar um ramo na frieza das noites.
Por mais sôfrego, o corpo pouco ajudando, a pele sem qualquer viço, a torneira que abro ainda é a de 1945. Fecho os olhos para banhá-los e o jorro se mistura com as vozes do recreio. O colégio de pé, a fábrica ao lado ainda apitando. Um frescor que banha muito além da pele e do calor destes nossos dias de magras esperanças.