É a primeira vez que escrevo sobre este tema, mas não a que falo sobre ele, de modo que, para mim, é uma oportunidade de refletir mais sobre o assunto e organizar melhor meu pensamento a respeito. Esta é certamente uma das vantagens que a escrita tem sobre a fala. Vamos lá.
Sabemos que a civilização ocidental cultua o êxito, em todas as suas manifestações. Para nós, ocidentais, de modo geral, “vencer na vida”, seja de que forma for, é a meta maior da existência, e “vencer” é um conceito sempre associado ao dinheiro, ao poder e à fama. Ou seja, quem não se der bem relativamente a pelo menos um desses três critérios objetivos pode fatalmente ser taxado de “fracassado”. Nos Estados Unidos, essa maneira de pensar e avaliar é levada ao extremo, de tal modo que uma das maiores ofensas que se pode fazer a alguém é chamá-lo de “perdedor”. Esta palavra é tida pelos americanos como um estigma, verdadeira maldição da qual há que se fugir a qualquer preço. Como se vê, tal cultura é frívola, cruel, implacável e injusta. E, no entanto, a maioria de nós nela mergulha totalmente e – o que é pior – a transmite aos descendentes, como se fosse uma lei natural da vida.
Numa cultura desse tipo é de se esperar, portanto, que as chamadas “vidas comuns”, isto é, aquelas sem muito dinheiro, sem poder e anônimas, não possuam, aos olhos da sociedade, nenhum valor – ou quase nenhum valor, o que dá na mesma. E então está aberto o caminho para as hierarquias de todas as espécies, para as discriminações e preconceitos, para injustiças e sofrimentos múltiplos, de tal maneira que, em muitas situações, essas vidas “banais” chegam até mesmo a “desaparecer” diante do olhar exigente de muitos que não se detêm para contemplar nada que se vincule à dimensão ordinária das coisas e dos semelhantes. A propósito, lembro da história que li, não sei mais onde, de um ascensorista imigrante. Era um senhor já de certa idade, muito gentil e educado, a conduzir no elevador, para cima e para baixo, todos os dias, os moradores de certo edifício de apartamentos. Ele estava sempre a postos, em sua servidão atenta e silenciosa, a ponto de os moradores, tão acostumados estavam à sua discrição, nem mais darem conta de sua pessoa, como se ele já fizesse parte da paisagem habitual do ambiente, como uma porta ou cadeira. Até o dia em que ele inesperadamente faltou ao serviço. Aí sentiram sua falta e perceberam o valor de sua ignorada presença. Mas então era tarde: ele tinha partido para nunca mais, dormindo, durante a madrugada.
O escritor francês Pierre Michon escreveu um livro a que deu o título “Vidas minúsculas”. Seus personagens são exatamente pessoas “comuns” de uma aldeia francesa, gente como a gente, como qualquer mortal destituído de fortuna, de poder e de notoriedade, cujas histórias não raro são mais interessantes e ricas, do ponto de vista humano, que a de um Donald Trump da vida.
Stefan Zweig, célebre escritor e biógrafo austríaco, afirmou certa vez que, ao escolher seus biografados, tinha uma especial predileção pelos “perdedores”, os derrotados e mal sucedidos de todos os tipos, personagens que beberam do cálice amargo da existência. Para ele, esses tinham mais a nos dizer e ensinar que os vitoriosos.
Eu também simpatizo com esses naufragados da história e da vida. Aprendi, contra a corrente, a admirar, no cotidiano, as vidas “comuns” dos que não se destacam, não brilham, e cumprem discretamente seus ofícios mais ou menos modestos – e tão relevantes para a vida coletiva da sociedade. Especialmente as donas de casa, mães de família cujo ofício inigualável é a criação e formação dos filhos, a preservação das famílias, totalmente doadas, sem nada pedir para si. Fico pensando: elas são o verdadeiro sal da terra. Que seria do mundo sem elas? Minhas avós, minha mãe, minhas tias foram mulheres assim. Muitas das mães de amigos meus também. E a minha sogra, já centenária e tão realizada, que às vezes, nos dias menos otimistas, lamenta-se por não ter feito nada de mais relevante, salvo, digo eu, ser a matriarca admirável que foi e é. Veja só. E não posso esquecer meu velho pai, igual a tantos outros: reto, trabalhador e amoroso, um homem perfeitamente “comum” – e tão único e tão valoroso em sua modéstia. Cada vez mais, essas pessoas, inclusive as que não conheço, são os meus heróis e os meus modelos.
Não é, claro, que não se deva admirar também as chamadas “grandes” vidas. Mas é que essas são verdadeiramente tão raras, que teríamos pouco para prezar se ficássemos restritos a elas. E registremos também as vidas “pequenas”, mesquinhas, vividas sem nenhuma grandeza, ao largo de qualquer virtude. Mas o que nos cerca no cotidiano são mesmo coisas e pessoas “comuns”, em muitos aspectos banais. Cabe-nos descobrir nelas o que há ou pode haver de extraordinário, porque quase sempre tudo depende apenas de nosso olhar, esse olhar capaz de descobrir insuspeitadas pepitas na areia turva. A mim, parece-me que há sabedoria nisso.