Manaus sentada às margens do Rio Negro, respirando o ar da maior floresta do mundo e morrendo por falta de oxigênio. Acabaram os suprimentos, remediados com urgência urgentíssima dos estoques vizinhos e dos que a cidade de São Paulo pôde mandar de avião. O intérprete da opinião da Globo, William Bonner, atinge o patético. Quatrocentas ou quinhentas pessoas estão pelos corredores sem ar e sem mais esperança de atendimento.
Desligo e corro à janela para ver um breu de céu e de terra que pouco ajudam, e volto a passar os canais. O livro novo de Ruy Castro, o Rio dos anos 1920, também pouco me ajuda. Depois tentarei explicar por quê.
E de canal em canal, caio numa sala moderníssima de onde vem um acorde não de todo desconhecido, do tempo em que “Seleções” lançava nas bancas os clássicos ligeiros. Carlos Romero, que estimulara o presidente Zé Leal a comprar radiola para a API, toma a si a tarefa de garantir fidelidade à coleção que começava por Tchaikovsky de O Lago dos Cisnes, justamente o que caía agora em minha fuga abafada de Manaus sem leitos nem oxigênio para os seus moribundos.
Mas não se tratava de concerto novo. Era a Sinfônica de S. Paulo, numa apresentação de dez ou onze anos atrás, com um novo maestro, francês, substituindo um brigão de nome difícil que, segundo João Carlos Martins, havia feito um belo trabalho, arranjando recursos que não foram dados, no seu tempo, ao grande Eleazar de Carvalho, nome que voltou a me lembrar a ousadia da Paraíba, bem antes disso, ao reingressar, com Burity no governo e Eleazar na batuta, nesse privilegiado mundo sinfônico.
O esforço que naquele tempo os paulistas tinham feito para conquistar a Sala São Paulo, um ambiente de concertos explodindo de rico e de novo, estimulados pelo trabalho do maestro anterior, não foi maior nem mais extraordinário do que se fez aqui entre 1980/82 , de modo a justificar a construção do Espaço Cultural, uma grandeza puxando a outra.
Nessa reprise, João Carlos Martins coloca a Osesp entre as cinqüenta melhores orquestras do mundo. Não ficava muito distante a orquestra da Paraíba, presente nos comentários especializados, admirada por músicos brasileiros e estrangeiros, com recitais gravados fora do país.
São Paulo, como não podia ser diferente, deu à reabertura de sua sinfônica o brilho de uma belíssima sala, tendo à frente do seu público o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, presidente da Fundação Osesp. E viu-se o maestro voltar três vezes para os aplausos de pé de uma seleta platéia. Seleção que começava pelo ex-presidente.
Aqui o salto foi bem mais alto em termos de participação social. Tanto na composição dos músicos como do público a elitização cultural foi bem mais atenuada. Até porque a nossa elite cultural não dava público bastante para lotar um teatro completo. A Sinfônica de Burity mesclou de preto e de pobre tanto os que tocavam quanto os que ouviam. Cadeiras e degraus, palco e platéia tanto procediam da beira-mar de ouvido estilizado como da periferia de aparência mais vulgar. O grande coro formado para o final da 9ª. Sinfonia de Beethoven parecia um mostruário apoteótico de mestiçagem e de inclusão social.
Em certas horas isso ajuda.