A obra de Émile Zola, Les Rougon-Macquart, é mais do que uma série de romances sobre a família que lhe serve de título. Trata-se, na realidade, de um painel, em 20 títulos, sobre a sociedade francesa do alvorecer ao final do segundo império (1851-1870). Seguindo a doutrina naturalista de que é o maior nome, esse escritor francês já nos fornece uma boa síntese dessa sociedade em três romances, La Curée (1872), L’Assommoir (1877) e Pot-Bouille (1882). Curiosamente, são romances cujos títulos são de difícil tradução para a língua portuguesa. Ainda que se traduza L’Assommoir por A Taberna, a narrativa diz mais do que o nome do bar do Père Colombe.
Ela se refere ao sentido de jogar alguém no abatimento, de matar com um golpe violento, de destruir, concepção que se encontra no verbo assommer. E isso é o que acontece com a maioria dos personagens, envoltos em uma vida miserável, deixando-se consumir pelos vícios, dentre eles o álcool. Nesse sentido, Gervaise Lantier, a personagem central, é emblemática. Dos outros dois romances, desconheço – é possível que haja – tradução em língua portuguesa.
La Curée – cujo sentido é a parte da caça que se dá aos cães, numa metáfora do que se joga para a população, enquanto os dirigentes da sociedade partilham entre si o que se convencionou chamar a parte do leão – é uma das pontas dessa sociedade, estando ali representada a alta burguesia que vive e se locupleta à sombra do poder, com cuja conivência conta para se entregar à especulação financeira e imobiliária. O outro extremo é L’Assommoir, retratando a vida miserável dos pequenos operários, habitando um condomínio um tanto sórdido, que lembra muito o cortiço descrito por Aluísio Azevedo no romance homônimo. Entre essas duas pontas, se encontra Pot-Bouille, cujo nome designa a cozinha de uma família. Embora esse romance trate da pequena e média burguesia, o que Zola nos mostra é como a cozinha, metáfora para as entranhas das relações familiares, é encoberta por uma casca de limpeza e de decência, que não consegue esconder por muito tempo a sujeira que ali se encontra em profundidade.
Nessa estruturação pensada e calculada por Émile Zola, através de diversos cadernos com anotações para a escritura de seus romances, é interessante notar como três personagens se destacam, embora uma delas seja contemplada com um romance só para si. As três personagens são Renée, Nana e Berthe. Renée (La Curée) é mulher de Aristide Rougon, que muda o nome para Aristide Saccard, de modo a não atrapalhar os negócios do irmão, Eugène Rougon, ministro do império e um dos articuladores da ascensão de Louis Bonaparte ao poder. Mulher da alta sociedade, Renée é pródiga em gastar e em rodar nas mãos dos homens que despertam o seu interessa, inclusive com o enteado, Maxime, muito mais jovem do que ela. Nana (Nana, 1880) é o seu inverso simétrico. Mulher bonita e sensual, que conquista Paris pelos seus dotes femininos, Nana é a prostituta de luxo, cuja diferença em relação a Renée é que ela exerce a sua função abertamente, sem esconder de ninguém, nem se mascarar como dama respeitável da alta sociedade. Igualmente a seu alter-ego, Nana é larga em gastos, sem fazer conta de dinheiro, levando os homens à ruína. No meio delas se encontra Berthe (Pot-Bouille), cuja sede inexaurível de gastos com a toilette a conduz para os braços de um amante. Todas são infelizes, embora Nana seja a única que, verdadeiramente, goza a vida, por vivê-la sem hipocrisia.
É nesse ponto que entramos no romance Pot-Bouille, cuja narrativa nos joga na cara a hipocrisia social, tratada, a um só tempo, com a crueza da degradação moral, conforme reza a doutrina naturalista, e com uma fina ironia, que só poderia sair da pena de um grande escritor como Zola. O espaço do romance é um condomínio pequeno e médio burguês, em Paris, onde moram profissionais liberais, gente que vive de rendas e proprietários de pequenos magazines, de que se originarão as grandes lojas de departamento. Um desses pequenos magazines se chama “Au Bonheur des Dames”, que, como diz o nome, faz a felicidade das mulheres, pela variedade de produtos para a toilette feminina. Dessa loja é que surgirá a grande loja com o mesmo nome, assunto do romance homônimo de Zola, publicado em 1883.
O personagem central de Pot-Bouille, Octave Mouret, um dos integrantes do clã Rougon-Macquart, chega a Paris, vindo de Plassans, sul da França, onde começa a fortuna e a importância da família, para ascender pelo comércio, como seus tios ascenderam pela especulação financeira e imobiliária (Aristides, La Curée) e pelo jogo político (Eugène, Son excellence Eugène Rougon). Desde o início, ao ser levado pelo arquiteto Campard, espécie de síndico do condomínio, Octave é confrontado com a rígida moral que rege o lugar, onde não são permitidas as visitas de mulheres aos homens solteiros, como o nosso personagem, e onde a convivência com as famílias que ali habitam exige uma moralidade a toda prova. Octave é, no entanto, mulherengo e cínico, e logo descobre que por baixo do verniz dos bons costumes a podridão se esconde.
Colocando em prática o seu projeto de ascensão, Octave faz a corte da dona do magazine, Madame Hédouin, sem descartar o assédio a outras mulheres, casadas ou não. Logo se torna amante da ingênua e romântica Marie Pichon, leitora de Dickens, que a ele se entrega sem qualquer interesse a não ser a paixão. Tornando-se um frequentador da casa de Campard, cuja esposa, Rosa, é quase inválida, Octave descobre os amores furtivos do arquiteto com a prima, Gasparine. Rosa, na sua ingenuidade ou talvez pragmatismo de esposa que já não divide o leito com o marido e que o vê fora de casa quase toda as noites, insiste para que a prima vá morar com ele e a ajude na administração da casa. É a legitimação do adultério dentro de casa, para espanto de Octave. A jovem filha dos Campard, Angèle, apesar do nome, nada tem de anjo, a despeito dos seus 13 anos. Instruída pela moral viciosa que as domésticas apresentam, ela haure o vício, para a alegria de Lisa sua instrutora, que a prepara para a degradação. A pequena não só conhece a situação que existe em sua casa, como ironiza e zomba dela junto com Lisa. Quando a doméstica lhe pergunta, por blague, como é que o pai faz com a prima, Angèle se joga violentamente no pescoço de Lisa e a beija com vontade na boca...
Octave descobre também os interesses de Mme. Josserand em buscar casamentos vantajosos para as filhas, enquanto o marido se acaba, além do trabalho normal, em fazer cópias e cópias de documentos, para ganhar uns trocados a mais, de modo a sustentar as exigências da mulher e juntar algum dinheiro possível para pagar um dote impossível de cinquenta mil francos. É assim que Madame Josserand consegue empurrar a filha Berthe, para Auguste, proprietário de um pequeno magazine, de olho na herança que o rapaz receberá com a morte do pai. Auguste, atacado pela enxaqueca que o consome dia-a-dia, é ainda mais consumido pelas exigências de gastos de Berthe. As querelas do casal se aprofundam e Berthe acaba nas mãos de Octave. Não há quem não tenha uma sujeira escondida por cima da capa de honestidade e moralidade. A busca desenfreada para ter é que constrói a aparência e a hipocrisia. Madame Josserand não esconde essa ambição, ao receber pessoas em casa, com o intuito de arranjar casamentos para as filhas, gastando, evidentemente, o que não tem:
“Mangez des pommes de terre, mais ayez un poulet, quand vous avez du monde à dîner... Et ceux qui disent le contraire sont des imbéciles”.
(Comam batatas, mas tenham galinha, quando houver pessoas para jantar... E os que dizem o contrário são imbecis – Capítulo II).
(Comam batatas, mas tenham galinha, quando houver pessoas para jantar... E os que dizem o contrário são imbecis – Capítulo II).
A cena posterior ao momento em que Berthe é surpreendida pelo marido, Auguste, na cama com Octave é página antológica de ironia fina e saborosa. Berthe foge apavorada, em camisa, quase nua, mas encontra a porta de seu apartamento fechada, sendo obrigada a ficar de fora, sozinha e no escuro. Para ela, que nada sabe do que ocorre no condomínio, o seu ato é abominável, daí a fina ironia com que essa cena nos é revelada. Como é um trecho longo, vou lhes poupar, caros leitores, o texto em francês, apresentando-lhes apenas uma tradução operacional minha:
Mas, pouco a pouco, a solenidade da escada a enchia de uma nova angústia. Estava escuro, de um frio severo. Ninguém a via e uma confusão, no entanto, a tomava, por estar assim em camisa, na honestidade dos zincos dourados e dos falsos mármores. Por trás das altas portas de mogno, a dignidade conjugal das alcovas exalava uma reprovação. Nunca a casa respirara um hálito tão virtuoso. Em seguida, um raio de luz deslizou pelas janelas do corredor e dir-se-ia uma igreja: um recolhimento subia do vestíbulo aos quartos de doméstica, todas as virtudes burguesas dos andares exalavam na sombra, enquanto sob a pálida claridade, sua nudez tornava-se mais branca. Ela se sentiu um escândalo para as paredes, ajeitou a camisa, escondeu os pés com o terror de ver aparecer o espectro de M. Gourd, de solidéu e de pantufas (Capítulo XIII).
Marie é quem a acolhe nessa angústia, em que Berthe se sente a única culpada de faltas irreparáveis. Num condomínio onde até as domésticas recebiam e escondiam os homens, é Marie quem tem uma palavra de consolo para a jovem – “Quando se ama, não se desconfia”. Na sua ambiguidade, essa frase pode ser entendida como uma advertência à cegueira dos apaixonados, que pensam ocultar de todos o que estão fazendo. Contudo, ela guarda em si uma verdade inquietante, revelando-nos que a culpa que sentimos não é pelo ato de traição em si, mas por achar que as outras pessoas não fazem o mesmo, só nós estamos afundando na degradação. Eis aí onde entra a sutil ironia de Zola, no trecho que vimos acima. Berthe acredita na decência do condomínio e se mortifica por isso, quando o seu mal-estar deveria ser pela traição realizada, independente do que os outros fazem. O apoio que Marie lhe concede, mostrando-as entregues à mesma desolação de infelizes no amor doméstico, abraçando e chorando as suas dores mútuas, põe em confronto a natureza das duas personagens e de suas traições. De um lado, a ingenuidade romântica e desinteressada materialmente de Marie; de outro lado, a traição calculada, para alimentar a vaidade e a ambição de ascensão de Berthe.
O final de Zola para o capítulo não poderia ser menos genial e irônico:
“Elles ne disaient plus un mot, leurs larmes ruisselaient, ruisselaient sans fin dans les ténèbres, au milieu du profond sommeil de la maison, plein de décence.”
(Elas não diziam mais uma só palavra, suas lágrimas fluíam, fluíam sem fim, nas trevas, em meio ao profundo sono da casa, cheia de decência.)
(Elas não diziam mais uma só palavra, suas lágrimas fluíam, fluíam sem fim, nas trevas, em meio ao profundo sono da casa, cheia de decência.)
Revelar uma sociedade que se esconde sob uma tênue camada de verniz é o intuito de Zola na sua obra monumental. Ainda que o faça com tintas cruas e quase caricaturais, sua obra levanta o véu que, querendo mostrar a sala de estar arrumada e asséptica, esconde o caos e a gordura da cozinha. Pot-Bouille é o desnudamento dessas relações sociais comandadas pela hipocrisia humana.