A minha casa fica lá detrás do mundo Onde eu vou em um segundo quando começo a cantar O pensamento parece uma coisa à toa Mas como a gente...

Simpatia é quase amor

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A minha casa fica lá detrás do mundo Onde eu vou em um segundo quando começo a cantar O pensamento parece uma coisa à toa Mas como a gente voa quando começa a pensar.
Lupicínio Rodrigues


Meu filho achou melhor eu vir morar com ele. Separou o maior quarto do seu apartamento, uma suíte de frente para essa pracinha simpática, cheia de árvores e gente. Colocou nesse cômodo estante, escrivaninha, televisão, uma cama que mesmo sendo de solteiro é espaçosa e confortável, trouxe meu computador e todos os meus livros. E o que é mais importante, não se esqueceu do meu bandolim e todas as partituras. É com aquelas oito cordas que converso com minhas saudades.

Mas voltando ao meu filho, Olavo sempre foi assim, cuidadoso comigo. Ficava preocupado. Eu sozinho lá no sítio. O caseiro a mais de duzentos metros de distância, na casinha que eu havia mandado construir para ele. Mas. se à noite eu precisasse, ele não estaria por perto. Relutei em vir, mas havia os netos, Felipe e André. O primeiro com seis e o segundo com quase cinco e desde que nasceram fizeram minha alegria. Acabei aceitando essa proposta que vinha com tintas de intimação. A nora, Maria Fernanda, a Fê, era assim com Gracinha e muito gentil comigo. Sabia que ia ser bem acolhido. E fui.

Nem contei. Gracinha foi minha mulher por quarenta e dois anos. Uma vida. Mas o Homem lá de cima resolveu levá-la antes do combinado. Que doença maldita é esse tal de câncer. Em três meses fez minha mulher definhar. Que padecimento. Só morfina fazia a coitadinha parar de chorar. Então, quando ela se foi, tive que aceitar, foi um descanso para a pobre.

Ainda fiquei uns meses lá no sítio. Dei trato gentil ao jardim de Gracinha e a tudo que me fizesse dela lembrar. O jardim? Fiz o que pude para manter aquela boniteza. Como ela gostava daquele pedacinho de mundo. Conversava com as plantas. Dona Sinhá era sua roseira preferida. Precisavam vê-la de conversa: hoje vou ter que podar a senhora, é lua nova, vai dar brotação vigorosa e vai florescer mais linda que nunca. Acho mesmo que Dona Sinhá a ouvia e era muito obediente, pois tempinho depois brotavam novos galhos e a seguir os botões anunciavam a premonição de Gracinha. Assim era com as prímulas, as onze horas, as flores de maio, as azaléias. E com as hortências, então?! Todas eram Marias, a Das Dores, a Dos Remédios, a Da Anunciação e por aí afora. Tratava-as como gente. Hoje fui ver Do Rosário e não achei que estava bem. Deve ter sido esse sol de queimar lagarto. Então, Do Rosário ganhava rega e adubo nas raízes.

Cedinho começava sua lida. Cada pé de pau, cada árvore, uma orquídea presa ao tronco. Não creio que tivesse menos de cinqüenta no entorno de nossa casa. Gracinha cobrava minha atenção: Norminha floriu, precisa ver como está mimosa. E eu ia ver Norminha com seus cachos dourados.
Seu Alcides, nosso gato angorá, e Doutor Freud, nosso boxer tigrado, e parrudo eram o xodó de minha mulher. Quando vim para o apartamento de Olavo tive que me desfazer deles. Que separação dolorida. Doutor Tolentino, proprietário do sítio ao lado, acolheu “os meninos” (era assim que Gracinha se referia a essa dupla serelepe). Sei que estão bem na casa desse meu amigo. Só espero que não sintam de mim a saudade que sinto deles, dói muito.

Quando entendi que vir para a casa de Olavo era uma decisão sem retorno, adoeci, Tive febre de quarenta e dois graus, cheguei a perder a consciência. Aliás, foi Tolentino quem me socorreu. Percebeu a minha ausência e ligou para Olavo. Mudaram-me para o apartamento naquele mesmo dia. Gostava daquele sitiozinho. Gostava? Muito mais que isso. Era um mundinho que eu e Gracinha escolhemos para o outono de nossas vidas.

Na porteira do sítio o nome da propriedade. Dois mourões de mais de dois metros e meio fincados, um de cada lado da entrada e nas extremidades de cima desses lenhos, um pedaço de corrente segurando uma placa de madeira rústica com o nome ali entalhado: “SÍTIO SIMPATIA É QUASE AMOR”. Gracinha se inspirara no nome de um bloco de carnaval do Rio de Janeiro. Mas, nossa propriedade era conhecida mesmo como SÍTIO SIMPATIA por uns ou SÍTIO DE DONA GRACINHA por outros. Não sei qual desses dois nomes acho mais mimoso.

Mas enfim, faz mais de um ano que estou na casa de Lavinho. Ele parece feliz com minha presença. Fê também e é toda agrados comigo. Ainda me lembro que quando ficou grávida de Felipe veio contar para mim. Estava assustada. Ela e Olavo ainda namoravam, não tinham terminado a faculdade. Chamei Gracinha que acolheu Fernanda, ouviu a história da menina com muita paciência e ternura e disse: já que aconteceu vamos ver o que podemos fazer. Em seguida deu uma reprimenda em Olavo. Quando viu Fê chorando perguntou: chorando por quê? Fernanda em soluços disse que não sabia como ia contar para o pai dela e concluiu com pensamentos trágicos: meu pai vai me matar. Foi quando Gracinha se levantou e disse: vem cá menina vou com você falar com o Arruda (era o pai de Fê). E não deixou Olavo fora do estorvo. O senhor vem também, seu irresponsável. Foram os três. Gracinha achou melhor eu ficar.

Arruda que era mais bravo do que onça com dor de dente, mas amoleceu com a conversa de Gracinha. Aliás, ficou com os olhos cheios de lágrimas (segundo o que minha mulher contou depois) e disse ao final: "Não era isso que eu queria para você, Fê. Mas agora é tocar a vida para frente. Só não quero ver minha filha falada. Então vamos organizar esse casamento". Olavo tinha vinte e um anos e Fernanda vinte. Casaram um mês depois. Arruda, hoje em dia, não faz nada na vida sem consultar Olavo e Dona Glória é toda chamego com meu filho. Dona Glória nem preciso apresentar, vocês já desconfiam quem seja.

Vez outra Arruda aparece por aqui e vamos dar uma caminhada em volta da pracinha aqui em frente. Ele é um bom sujeito e acho que aparece mesmo para me fazer companhia. Conversamos sobre muitas coisas quando sentamos naquele banco sob a sombra de uma frondosa sibipiruna. Torcemos pelo mesmo time que não anda lá essas coisas, mas que nos deu muita alegria em nossos tempos de menino. Arruda é saudosista. — "Tá lembrado? Gylmar, Ismael, Mauro, Dalmo e Haroldo; Lima e Mengalvio; Dorval, Coutinho, Almir e Pepe.
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Que virada no Maracanã!. Estávamos perdendo de dois a zero e viramos para quatro a dois. Nem Pelé e nem Zito estavam naquele jogo. Depois na 'negra', vencemos de um a zero com gol de Dalmo, de pênalti. Tá lembrado?" — Claro que eu estava, só não tinha a memória do Arruda.

Algumas vezes levamos o tabuleiro de xadrez e aquela sombra nos acolhe em nossos combates. Na maioria das vezes eu venço. Meu oponente é muito distraído e perde o foco durante uma partida. Aproveito a distração.

Se chove, me liga. Pergunta da Fê, do Olavo e das crianças. Agradeço muito a atenção deles. Digo deles, porque Dona Glorinha vira e mexe me convida para uma bacalhoada.

As crianças quando estão em casa me tomam o tempo. É um tal de vô vem cá, vô faz isso, vô faz aquilo. Leio histórias para eles e levo Felipe na escolinha de futsal. Fica todo orgulhoso quando aplaudo um drible dele. O menino tem jeito.

Gostam de me ver ao bandolim. Olavo às vezes abre umas cervejas e chama uns amigos para me verem tocar. Gosto de protagonizar esses momentos.

Ah, meus amigos, quantas vezes toquei só para Gracinha.

É assim meus caros que vou vivendo, sem aquela metade que arrancaram de mim. Tenho os dias cheios, mas as noites são vazias. É difícil pegar no sono. Ficamos no quarto, eu e meu bandolim. Sempre me vem a imagem de Gracinha no jardim regando as plantas. Tento ser firme nessas horas. Mas não há como. As lágrimas me chegam abundantes como fossem capazes de lavar minhas saudades. Ontem mesmo chorei muito. Foi só eu pegar a palheta, afinar as cordas que me veio a imagem de nossa casinha lá no sítio quando eu fazia meu pequeno concerto só para ela me escutar e aplaudir. Como o pensamento voa nessas horas abraçado às nossas melhores recordações. Aparecem como num filme em cinemascope. Ontem, fechei os olhos e vi Gracinha se equilibrando na escada, me ajudando a pendurar aquela placa na porteira do nosso sítio, aquele pedaço de tábua na qual ela mesma entalhou.

É isso meus amigos, vou levando a vida do jeito que posso. Gracinha tinha razão, simpatia é quase amor, mas saudade, o que é?

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  1. Saudade é dor que não tem cura! É a nossa realidade. Se não morremos jovens, envelhecemos. Uma ótima leitura!

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