Rua Barão de Jaguaripe, Ipanema, Rio de Janeiro. Não recordo o número do apartamento. Só sei que lá fui levado pelas mãos amigas de Gilberto Mendonça Teles.
— Barão de Jaguaribe?, indaguei. — “De Jaguaripe”, corrigiu-me Gilberto. E veio-me à mente o fragmento de um poema de Manuel Bandeira, quando ele foi à forra com um professor que o havia alertado — ainda no curso primário — sobre o nome correto do rio que banha a cidade do Recife.
“Capiberibe”, ter-lhe-ia dito o professor, quando, para o menino Manuel Bandeira, o nome correto seria Capibaribe, pois, àquela época, a vida não chegava pelos jornais nem pelos livros, “vinha da boca do povo na língua errada do povo/Língua certa do povo/ Porque ele que fala gostoso o português do Brasil”.
No caso da Rua Barão de Jaguaripe, os meus ouvidos queriam porque queriam escutar Jaguaribe, tão acostumados estavam com o nome de um dos bairros da então provinciana cidade de João Pessoa.
O apartamento ao qual me levava Gilberto eram dois. Num, morava o bibliófilo. No outro, moravam os seus livros. Mas livros à mão cheia, como no poema de Castro Alves. Mas não só livros, também manuscritos de autores consagrados como Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Rachel de Queiroz e muitos e muitos outros. E no meio dos livros, às vezes conversando sobre tudo, menos sobre literatura, dois monstros sagrados: Pedro Nava e Carlos Drummond de Andrade. Isso sem contar Herman Lima — autor da excelente “História da caricatura no Brasil” —, os poetas Alphonsus de Guimaraens Filho e Homero Homem, o caricaturista Alvarus...
Estava, enfim, no famoso Sabadoyle, conforme Raul Bopp havia batizado às reuniões promovidas todos os sábados, a partir das 15h, pelo bibliófilo Plínio Doyle.
Lã se vão quase cinquenta anos e me ocorre agora lembrar, mais uma vez, o Bandeira para o qual a casa do avô parecia impregnada de eternidade. Pois bem. A biblioteca de Doyle, Drummond, Pedro Nava, os demais circunstantes, tudo me parecia também impregnado de eternidade. Só que hoje estão todos dormindo, dormindo profundamente... Apenas os livros, o imenso acervo de Doyle, resistiram à voracidade do tempo. Parece-me que foram vendidos ou doados à Fundação Casa de Rui Barbosa.
Mas o que ficou daquela tarde de início dos anos setenta nas minhas retinas hoje já tão fatigadas? Drummond, entre meio atento e distraído, e do qual pouco me aproximei, talvez por me lembrar do tom de advertência contido no poema “Apelo a meus dessemelhantes em favor da paz”: “(...) Não sou leitor do mundo nem espelho de figuras que amam refletir-se/ no outro/ à falta de retrato interior. Sou o Velho Cansado/ que adora o seu cansaço e não o quer/ submisso ao vão comércio da palavra./ Poupem-me, por favor ou por desprezo,/ se não querem poupar-me por amor”; Pedro Nava que, como um cargueiro abarrotado de lembranças, caminhava quase adernando, prestes a naufragar na encarapelada e tempestuosa maré do instante; Alvarus, de quem recebi uma caricatura de Noel Rosa com a recomendação quase expressa de que não a vendesse depois dele morto; Alphonsus de Guimaraens Filho, cujas mãos longas e brancas pareciam refletir o luar dos muitos poemas do pai, o poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens; Homero Homem, que, anos depois, abriu as portas do seu apartamento e me recebeu, juntamente com o repórter Jorge de Aquino Filho, para dar uma entrevista ao “Correio das Artes”...
Contudo, foi o Pedro Nava de compleição graúda e gestos lentos — pareciam desmentir a rapidez de raciocínio que permeia todo a sua obra memorialística – quem permaneceu a ferro e fogo na minha lembrança. Principalmente depois que escolheu “o dia a hora o gesto o meio a dissolução”. Tanto que por ocasião de sua morte, publiquei um artigo do qual transcrevo algumas linhas: “A última vez que o vi foi na Rua General Glicério, Rio de Janeiro, início da década de 80. Dias depois, já em João Pessoa, recebo um exemplar de “Galo-das-trevas”. No livro, logo após a dedicatória, a data que, por muito pouco, não coincidiu com a da sua morte”. // “(...) Àquela época, custou-me acreditar um octogenário pôr fim à própria existência. E o fato é que não só eu fui tomado de surpresa. A imprensa também o foi, do contrário não teria dedicado uma série de reportagens ao assunto”. // “(...) Ainda hoje, diante do autógrafo de Pedro Nava, fico a fazer conjecturas. Uma delas é a de que o memorialismo é uma espécie de suicídio. Mas um suicídio branco. Sobretudo quando as palavras existem à feição de bisturis extirpando o presente para restaurar o passado. Como o fez o escritor e médico Pedro Nava, pelo menos até o momento em que as suas memórias começaram a ocupar um passado recente, pois, a partir de então, o tecido esgarçado do tempo pretérito parecia dificultar toda e qualquer tentativa de ‘cirurgia’. Restou-lhe, como alternativa, o revólver. E com ele — lápis disfarçado — o estampido na memória”.