No meio de uma das extensas escadas rolantes do secular metrô do centro de Londres, muito profundo em certas estações, um grupo de garotas, entre jovens e adolescentes, entoava eternas canções. Não pareciam se incomodar em ser vistas, admiradas, ouvidas, encobertas pela aura de alegria e espontaneidade com que cantavam. Afinal, a autenticidade dá brilho às manifestações nas quais o entusiasmo ofusca qualquer indício ou resquício de timidez.
Era início da noite de sexta-feira, em um outono de Londres, e quem sabe aquela empolgação se houvera acrescida ao término de um dia de escola, de olho no fim de semana…
A cena perpassou da observação ao encanto em todos nós, surpresos ao ver que, após 50 anos, quase o triplo da idade daquelas garotas, a música dos Beatles permanecia viva. Viva porque é clássica, e como clássica se eterniza. É possível se antever que no próximo século outro grupo de adolescentes, talvez em um metrô aéreo ou numa jornada às estrelas, solfeje as inesquecíveis melodias.
Muito já se disse, muito já se escreveu, estudos abundantes confirmam os Beatles como fenômeno incomparável. Não apenas sob aspectos sociológicos, ideológicos, psicológicos, mas sobretudo pela qualidade musical de suas obras.
Concebidas em processo evolutivo que acompanhou o tempo, criou e influenciou conduta de gerações que as vivenciaram e sucederam, suas músicas refletem exatamente a amplitude diversificada de estilos, mensagem e poesia.
Bem além das partituras em que registrou a beleza das frases melódicas, o quarteto transmitiu ao mundo um manifesto inovador em prol do amor, do romantismo poético, causando ruptura paradigmática de costumes, contagiando, convidando à reflexão sobre as relações humanas, urbanas, principalmente por entoar um clamor à paz.
A arte dos Beatles impressiona qualquer estudioso de música erudita. Na tessitura composicional se insere cronologicamente uma estrutura enriquecida gradativamente, ao longo do exercício criativo, com processos mais ousados e bem elaborados, como ocorreu com grandes compositores da história. A simplicidade presente em um minueto de Bach, numa sonata de Mozart, numa sonatina de Beethoven, que se enrobustece em obras posteriores, a exemplo das grandiloquentes missas e sinfonias corais, é fenômeno circunscrito ao trabalho dos geniais rapazes ingleses.
Da bucólica inocência de Love me do, à pulsante alegria rítmica de Help e She loves you, do lirismo de The long and winding road às declarações amorosas de versos plenos de poesia, à instigante Sgt. Pepper's e à densidade dramática de A day in the life e Lucy in the sky with diamonds (com requintada participação do cravo), o espectro construído pelos Beatles é artisticamente completo. Não faltou por onde distribuir talento na obra que alcançou infinitas possibilidades.
Desde as canções primeiras, ainda restritas ao reduto britânico, já se percebe a arte de criar planos sonoros justapostos em aspecto contrapontístico, estabelecidos tanto nas vozes distintas como nos coros em background e na criativa instrumentalização. Já eram composições em que se denotava apuro técnico, ainda que adquirido pela talentosa inspiração, que tantas vezes se sobrepõe ao conhecimento acadêmico.
A afinidade com a concepção clássica de música se faz nítida sob vários ângulos, principalmente na sonoridade harmoniosa de linguagens simultâneas, rítmica, vocal e instrumental.
Esta sintonia certamente estimulou as orquestras sinfônicas de Londres, Vancouver, Miami, São Petersburgo e a italiana Mitteleuropa Orchestra, entre outras, a produzir célebres arranjos e transcrições em cobiçados palcos, inclusive para gravação de álbuns.
A riqueza artístico-musical dos Beatles se estendeu e se enriqueceu por seus dramas e experiências de vida até os prenúncios e concretização da separação. Uma separação apenas física, com o espírito perpetuado nas carreiras solo.
A vivência mística com o psicodelismo, as conturbações existenciais, a busca pelos insights divinos por meio de alucinógenos, a aproximação com o hinduísmo e outras inserções em planos espirituais também pontuaram notória e notavelmente sua obra de maneira impactante.
A exploração instrumental foi igualmente profícua, em vários timbres, nos sopros, metais, cordas, teclados e até em cítaras. A percussão que recheia Revolution, o ritmo sincopado de Ticket to ride, a orquestração dos álbuns Magical Mistery Tour e Yellow Submarine,
Os Beatles excederam os limites e contornos de todos os outros grupos de música pop. Foram muito além de tudo. This boy, Girl , e You've got to ride your love away são exemplos da essência que caracteriza a plenitude de uma balada romântica. I me mine, o espelho da nostalgia, Penny Lane resume a força telúrica-urbana, o jingle dançante é imbatível em From me to you. O mistério se escuta em Blue Jay Way, a poesia permeia I'll follow the sun como em poucas canções, a doce harmonia coral de Because e Michelle é comovente. A religiosidade tem registro impressionante em Within' you without you . Em Helter Skelter a alma do rock se eterniza, para citar alguns exemplos alcançados pelo histórico conjunto.
A grande importância da criação desta inesquecível banda se imprime justamente na originalidade e abrangência de seu universo. A manifestação solidária, a relação entre a urbe e o ser humano, a rebeldia, a liberdade, o romantismo consolidam-se emblematicamente na grandiosa mensagem de paz, poesia e amor, presentes nas três memoráveis canções: All you need is love , Something e Yesterday . Melodias que indubitavelmente soarão pelos lábios das futuras gerações, por infinitas eras, em metrôs, naves espaciais ou na simples fantasia de um submarino amarelo.