As chuvas desertando no céu e deixando a plantação – um milharal de começo tão promissor – definhar pelo campo, mas voltando, intempestivas, para diluir a caieira de tijolos acabada de erguer (aproveitando uns restos de águas de um barreiro próximo), num impulso desesperado e salvacionista do prejuízo anterior –, quando finalmente pronta e apenas nos preparativos da queima para que os tijolos, vendidos de antemão, fossem finalmente entregues.
Isto mesmo, aquilo acontecendo no exato dia marcado para a queima da caieira, e pior: um pouco antes do crepúsculo da noite, hora normalmente empregada para dá-se início ao cozimento dos tijolos, quando vai ser necessário alimentar as bocas para uma fogueira que há de fazer o ar tremer em volta das paredes, e de ver o dia nascer. O garoto estava comigo, e durante aquele dia me ajudara bastante com o carregamento dos feixes de lenha, e sem esquecer de providenciar com a tia, com quem vivia, a panela de arroz e os pequenos peixes salgados, para serem assados à noite, nas brasas da caieira.
Havia percebido, já no começo da tarde, a mudança que se operava no tempo, no ar, mas fiz questão de ver aquilo como um mero prenúncio de que o tempo virava enfim, e em boa hora, afinal a caieira estava terminada, quem sabe fosse um sinal de concórdia dos céus, o anúncio, talvez, para dali a uns dois ou três dias, de uma atenuação daquela seca verde.
Recusei-me a acreditar naquilo (sempre raciocinando como o jogador que sempre fui). Não fazia agora o menor sentido a irrupção dessa nova catástrofe, ao final de tudo. Afinal, até ali o jogo fora jogado em lances duros e decisivos. Uma catástrofe inesperada e extrema na sequência de uma reviravolta de meios após aquela primeira, aquela primeira catástrofe que se tinha construído numa agonia lenta?
Não era justo.
Do primeiro infortúnio trazido pela escassez de chuvas, eu havia colhido uma saída espetacular, cujo brilho indicava uma dessas cartadas que nunca surgem a não ser para virar um jogo. Além do que, não escutara jamais que algo assim tivesse acontecido com Seu Ninguém: Não era possível que a mudança de tempo fosse sinal de uma maldita de uma chuva caindo antes do tijolo está queimado. Mas depois, um mosquito pousou próximo à minha boca, e eu prontamente o esmaguei na mão. Era um pequeno cupim alado, e uma revoada deles bateu de encontro à caieira. Eles se espalharam, buscando penetrar entre os tijolos.
Só depois vi as três grandes colunas de nuvens que se erguiam no horizonte, o que me fez lembrar de um dia antes ter escutado coaxar de sapos naqueles restos de alagado, de onde tirara a água – na verdade, uma lama, para fazer o barro dos últimos tijolos, e que então nada me passara pela cabeça, mas agora era só olhar o chão e ver a movimentação apressada das formigas.
O menino viu que ele falava alguma coisa, sozinho, e que um esboço amargo de sorriso – quase o anúncio de uma careta, de algo que não se completa – havia teimosamente estacionado em seu rosto, enquanto permanecia de cócoras, puxando a lenha seca de trás de si e empurrando-a para dentro das bocas. Fazia isso com rapidez e destreza quase involuntárias, atirando a lenha fina de cabeça pelos interstícios entre os paus e as paredes da boca, de modo mecânico e certeiro e sem olhar uma única vez para o alto.
O garoto tinha parado de trabalhar fazia um tempo, tendo começado a sentir frio, uma sensação de confusa inutilidade tomando conta de si. Lentamente foi aproximando-se daquele lugar aonde pelo menos parecia haver alguma certeza, pois o homem não parava, como se travasse uma luta que não era de mais ninguém, nem sequer contra o tempo, uma luta apenas de si consigo mesmo.
Olhando para um lado e outro, achegou-se, e parou ao seu lado. Ergueu um braço e apoiou–se na parede da caieira, o corpo fazendo um pequeno arco, o outro braço dobrado, mão nas ancas, o pé do lado exterior apoiando-se no outro calcanhar. Procurava indeciso o olhar do homem, mas este continuou o que fazia até que o menino – que sempre gaguejava um pouco - conseguiu forçar um tempo para as palavras e perguntar-lhe sobre algo que pudesse fazer. Então aquele homem finalmente parou e olhou para o garoto, e este que esperava a resposta olhando alternadamente para ele e para o alto.
Sem responder ainda, o homem ergueu-se e deu alguns passos afastando-se da caieira, caminhava com punhos ligeiramente cerrados e olhava para o chão como se meditasse as passadas, naquela atitude concentrada de alguém prestes a tomar alguma decisão grave e definitiva, só que até aquele momento sem conseguir fazer qualquer ideia mais precisa de qual fosse ela, como alguém que representa, mas não é bom ator. De repente voltou-se para o lado oposto de onde àquela hora deveria estar o sol.
Os grandes torreões de nuvens que vira a pouco menos de uma hora no horizonte, para os lados do leste, tinham desmoronado para dentro de uma massa única e acinzentada que em questão de minutos –agora não tinha como duvidar – estaria sobre suas cabeças.
Você acredita em Deus Perguntei Sim, a credito O menino respondeu E Ele é bom Tornei a perguntar.
Dessa vez o garoto não respondeu no tempo porque sentiu travar-se por dentro, estava novamente confuso e não sabia de nada que pudesse fazer naquele momento. Muito menos entendia porque o homem deixara as coisas correrem daquele modo, e a verdade é que o garoto estava longe sequer de formular o problema com alguma exatidão. Sentia, isso sim, a imensa solidão de seu companheiro, pressentia aí um grande pesar.
Há mais de uma hora que o garoto dera-se conta do amigo evitando dizer qualquer coisa, o que lhe trouxe a suspeita de que pelo menos naquele resto de dia não ia ter fogueira nenhuma, também que toda aquela lenha iria se molhar, dificultando assim o trabalho para outro dia qualquer em que não houvesse ameaça de chuva. Essas coisas lhe vinham atabalhoadamente na cabeça, porque o menino não sabia ainda aquilo que seu companheiro de início apenas suspeitou, mas àquela altura tinha como um fato: somente um milagre salvaria os tijolos. No mais, socar a lenha para dentro das bocas não deixava de ser uma tentativa, embora mínima de protegê-la, e um vivente, jogador como ele – não tem jeito –, vai estar sempre à espera do próximo milagre.
Portanto o garoto estava confuso, e tinha agora os olhos, hora arregalados, hora piscando fortes e semicerrados, pois um vento impetuoso chegara e era impossível que não houvesse nada que fazer a não ser responder a pergunta que ele não entendia aonde queria chegar, e que, de qualquer modo, nenhuma espécie de bem podia lhes trazer, não naquela hora, e também porque o vento agora parecia soprar de todas as direções, de modo a não deixar nada quieto.
Então o vento deu de ziguezaguear, arremeter e depois voltar em círculos como se não tivesse mais para onde ir, tivesse simplesmente chegado a um seu destino de batalha, qual um batedor atarefado que trata de fazer o reconhecimento urgente e minucioso da área antes de alguma poderosa comitiva. Com isso, acabara de jogar com a tampa da panela para os lados da barreira – de onde havia sido retirada a argila –, e ao mesmo tempo varria os grãos soltos dos tijolos crus, diretamente da caieira para o rosto do menino. Mas o menino, magrinho, ajeitando-se nas pernas, com uma mão que tentava incertamente proteger os olhos, novamente tinha achado o tempo das palavras É, De Deusebom Respondeu.
O homem deu a entender que ia dizer mais alguma coisa, mas nesse momento eles perceberam a luz azul e tremeluzente acima de suas cabeças, e que se abriu ao máximo e assim se estabilizou por um momento, num alcance que abarcava todo o mundo visível em volta deles, enquanto sentiam que seus corpos se tinham tornado vazios e involuntários sobre o chão de repente iluminado, isso demorando a eternidade de uns poucos segundos, e quando finalmente parou, viram-se então aqueles dois numa situação quase perfeitamente oposta à anterior: agora como se tivessem mergulhados num mundo velado, juntos com tudo numa penumbra súbita, porém carregada de tenso e elétrico silêncio. Então o trovão despencou.
*Continua no próximo capítulo