Saudade no peito,
É como fogo de monturo.
Por fora tudo perfeito,
Por dentro fazendo furo.
Patativa do Assaré
Patativa do Assaré
Confusas e sombrias as fronteiras que separam a liberdade e o cativeiro. Meus sonhos de cativo levam-me sempre às sombras da oiticica, de onde para mim, estabeleciam-se os limites do mundo. Hoje de seus galhos contemplo horizontes onde pulsa a vida, que de meu cárcere não ousava o coração cismar.
Fizeram-me prisioneiro em minhas primeiras aventuras, já desgarrado do jugo e dos cuidados maternos. Bati-me à cata de alimento farto. Uma touceira prometia-mo fausto. Nela embrenhei-me, e a vida que de cuidados pouco me ensinara, fez despencar sobre mim uma engenhoca preparada com mister e,
— Painho!? Um galo-de-campina!
Começaria então, uma incomum relação de benquerença. Fui levado à gaiola na varanda rústica, de onde a partir desse dia, eu e meu carcereiro faríamos acercar-se de nós, aquele pedaço de mundo, com toda a sua gama de anseios sonhos e meiguice, como que se a vida não ousasse transpor-se além dos pés de oiticica, dos de jurema, dos mandacarus, pois ela iria resumir-se a ambos, até onde alcançasse meu canto e os astutos olhos de Pudim.
Contou-me que de Pudim lhe chamara pela primeira vez o Onório, encarregado do manejo das cabras, e só mesmo o Onório, que trata com esmero a criação, poderia achar-lhe o “Pudim”, como que se fosse possível garimpar comparações capazes de presentear a doçura de uma alma como a do meu pequenino verdugo.
Desde que me aprisionou, cobriu-me de cuidados, e só a mim dedicava seu tempo. Mantinha-me a alpiste e vez ou outra desbravava a caatinga atrás dos saborosos
— Canta, Galego, canta!
Quando o inverno vinha com mais rigor e o aguaceiro ameaçava sangrar o velho açude, Pudim recolhia-me à noite como que se pronto estivesse para socorrer-me numa emergência maior. Estendia a rede e colocava a gaiola no chão, próxima o suficiente para chamar-me às grades e afagar-me o cocuruto. Quantas vezes o vi adormecer nesse trato mimoso! Mas ao que o Sol desse sua graça, íamos juntos à varanda. Voltava ao meu lugar de costume e Pudim a seu tamborete, sempre a cobrar-me a vida que se inaugurava com o Sol.
— Canta, Galego, canta!
Mesmo quando aparentados do brejo ganhavam o sertão e o sítio, Pudim não se afastava da varanda. Fazia questão de exibir meu canto. Uns quedavam de admiração, outros de troça; esses últimos, provavelmente inconformados com o carinho que me era dedicado. Na maioria eram meninos que muito já conheciam das letras e tão pouco desses sentimentos capazes de justificar que almas há para alimentar de zelo e ternura corações como aquele que enchia o peito de Pudim.
Esqueceu de si no mesmo tanto que a mim se dedicava. Até que numa manhã, ausente do tamborete, sua voz de dentro de casa veio buscar minha atenção. Chegara sem a costumeira alegria. Aquela mesma que requisitava meus gorjeios.
— Mãe, traz o Galego pra dentro.
Muito dias, muitas noites, o vi prostrado à rede. Gente grande num entrar e sair rumorosos e apreensivos do modesto aposento. Quando sós, eu o via triste e frágil, esticando os bracinhos combalidos a cobrar-me a cumplicidade da qual nunca me furtei.
— Canta, galego, canta!
— Vai, Galego, vai.
Teimei em não partir. Muito me impressionava seus olhos marejados.
— Sai da janela, Galego! Vai embora!
Tentava mostra-me rancor, como que se eu pudesse temê-lo. — Vai, Galego! Eu já disse, vai!
Inútil relatar aqueles momentos em que eu relutante cantei quase desvairado, na incompreensível escolha do cativeiro desdenhando a liberdade tão próxima. Até que Pudim tomou-me às mãos, beijou-me o cocuruto que tantas vezes acariciara, e à luz das primeiras estrelas atirou-me aos céus. Desacostumado ao voo e à liberdade ganhei exausto os galhos da oiticica, e de lá ainda pude ver Pudim deixando a janela, enquanto o acauã insistente, envolvia o sertão com seu piar melancólico.
Naquela noite cuidou o destino para que Pudim nunca mais me ouvisse, Nem o acauã, nem outro pássaro qualquer. Morreu agarrado à minha gaiola como tributo à sua paixão obstinada.
Esta é minha história. Minha e de Pudim. Quem pela manhã passar desapercebido por esse sítio, nos momentos em que o Sol vem povoar o mundo, há de me ouvir nostálgico atender o farfalhar ruidoso dessa oiticica que traz do céu o pedido matinal de Pudim, a confundir-me os limites que separam a liberdade e a servidão.
— Canta, Galego, canta!