O assoalho tingido de marcas de solados. Sujo. Crianças brincavam de ossinho, sacudindo aos ares carretéis desnudos cortados ao meio, apanhando-os no ar. As mãozinhas enegrecidas pela poeira. Ninguém ligava para doenças, nem higiene. O dono da casa, que tinha mobilidade reduzida, pedia que parassem com o jogo: em vez de estarem ajudando as mães na cozinha, lavando pratos, cuidando em aprenderem a ser futuras mães e esposas! As meninas continuavam a divertir-se, as lições por estudar, os deveres da escola por fazer, a prova de português, amanhã, e elas nem aí.
Quando se aproximava o aniversário de Maroca, a casa era lavada da sala de visitas ao quintal. Maroca ficava apenas olhando o desenrolar do ossinho, dos anéis entre os dedos, dos pula-cordas, dos esconde-esconde. Tinha os olhos grandes, pretos, redondos, e ficava repetindo a ninina, a ninina, a ninina. Ria, incontrolável, se lembrando da irmãzinha mais moça que ela, de nove anos (Maroca ia completar onze). Uma injeção lhe estancou, para sempre, os movimentos, deixando-a meio alheia, com os bracinhos finos, as mãos amassadas, os dedos curvos. A ninina era Maura, que sempre fazia um carinho à doentinha.
Chegou o dia de arrastar os móveis e cuidar em lavar a casa. Era festa: água à vontade, espuma, vassouradas, as garotas e a mãe de Maroca arrastando a sujeira concentrada, cantarolando. O dono da casa lia o jornal. Ficava em sua imobilidade próximo a um janelão. Gostava de ver todas em atividade.
No final, o piso enxuto, o lustrar dos móveis com óleo, o cheiro de alfazema, a toalha posta, o bolo, o dia do aniversário, todos participavam da festinha. Todos, não.
Maroca, a aniversariante, não tinha sopro para apagar as velas. Olhava tudo, noutro mundo. Como quem enxerga por um espelho turvo. Nem sabia ser a homenageada. Recebia o primeiro pedaço do bolo da ninina, Maura. Um furtivo beijo do pai imóvel. Outro da mãe, exausta.